sábado, fevereiro 03, 2018

Roth e outro



      Releio dois livros: “O passado de uma ilusão – ensaio sobre a ideia comunista no século XX”, de François Furet, e “Casei com um comunista”, de Philip Roth. Fui amigo de Furet. Sempre me lembro de um almoço na casa dele, em Paris. Enquanto abria o vinho, ele me disse:
– A independência traz sofrimento.
François Furet foi um grande historiador da Revolução Francesa, que desmontou, caracterizando-a como um mito. A esquerda o detestava. Foi chamado de fascista. Em “O passado de uma ilusão”, desconstruiu mitos do comunismo. Pesquisador de arquivo, trabalhava com fartura de dados e não temia abalar certezas e idolatrias. Outra lição sua:
– O historiador deve saber mais sobre uma época do que quem a viveu.
Para Furet havia dois grandes perigos no jogo político: os fascismos de direita e de esquerda. A tentação de aniquilação do outro pelo insulto e pela desqualificação moral, política e ideológica.
Ira Ringold é o protagonista de “Casei com um comunista”. Ele vem de baixo, mas se casa com uma atriz famosa e vai viver numa mansão. Em tempos de caças às bruxas, arrisca-se, contradiz-se, assusta e provoca. Quando a esposa recebe a alta burguesia em casa, ele não suporta e insulta um convidado armando um grande barraco.
– Como é que uma pessoa consegue sentar para jantar ao lado desse assassino nazista filho da mãe? Como é que fazem uma coisa dessas?
Depois de muita discussão, os convidados preparam a saída. Ira ainda tem insultos em estoque para disparar. Solta o maior petardo:
– Werner von Braun! Um engenheiro nazista filho da mãe. Um fascista nojento filho da mãe. Você se encontra com ele e janta com ele. Verdade ou mentira?
O burguês insultado, marido de uma escritora de best-sellers, não se deu por achado. Ao bater em retirada, limitou-se a dizer:
– Isso é muito precipitado da sua parte, senhor.
Essas leituras são provocativas. Na sobremesa, Furet me resumiu a ideia central que sempre lhe atraiu insultos e contestações severas:
– O fascismo e o comunismo são irmãos gêmeos no ódio devotado à democracia liberal e à liberdade de pensar por contra própria.
De fala calma, Furet botava fogo no circo: “Surpreendente no caso dos intelectuais é que em vários momentos da história existiu a possibilidade de conhecer a verdade. Cito os relatos do início dos anos 20 ou de Souvarine, que foi um dos primeiros a testemunhar sobre o regime soviético, e tantos outros. Ignorou-se tudo isso. Mesmo o relatório de Kruschev não eliminou a ilusão, pois houve uma migração da mitologia comunista na direção da China, de Cuba e mais tarde do Camboja e da Nicarágua”. Ele apanhava os paradoxos: “O mundo burguês na história da humanidade representa a sociedade que produz o maior número de inimigos dela mesma”. Por quê? Por não oferecer redenção.
Edgar Morin lutou contra o nazismo. Saiu do Partido Comunista Francês nos anos 1950. Manteve uma sensibilidade de esquerda. Tem lutado contra racionalizações e cegueiras, “entre as quais a explicação por maquinação, complô ou intriga”, pois tudo isso produz “avalanches, consolidações de erros, ocultações, cegueiras, extravios, divagações, delírios nas vidas, nos negócios e na história dos homens”. Como se ver de fora? Como se conhecer? Como não sucumbir?JM

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