domingo, novembro 26, 2017

Herdeiros


Para encerrar: era uma vez um país que não queria se enxergar apesar de todos os espelhos que lhe eram oferecidos. Esse país se chama obviamente Brasil. A última lente que lhe foi apresentada tem um nome sugestivo: “A distância que nos une, um retrato das desigualdades brasileiras”. É um produto da Oxfam, entidade internacional que escancara os fossos mundiais entre ricos e pobres. O Brasil é um dos países onde menos se paga imposto sobre heranças. Para não deixar dúvidas nem angústias: “Em São Paulo, a alíquota do imposto sobre herança é de 4%. No Reino Unido, ela alcança 40%”. Comunistas? Não.
Pragmáticos. Nós é que somos originais: “A posse de jatos, helicópteros, iates e lanchas não incorre no pagamento de nenhum tributo por seus proprietários, enquanto os veículos terrestres requerem pagamento do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA)”. Deve fazer sentido, não? Mas qual? Mistério. O agronegócio também recebe seus presentinhos: “A despeito do País ter uma porção de terra cultivada de cerca de 300 milhões de hectares, 35% de todo o território nacional, o valor arrecadado com o Imposto Territorial Rural (ITR) representa menos de 0,06% do total arrecadado pelo Estado Brasileiro”. O calote ainda em torno de R$ 30 bilhões. Detalhe para reflexão matutina: “Apenas 9% dos estabelecimentos acessam 70% de todos os recursos públicos destinados à produção agropecuária”. O bolo não é para todos. Há estômagos bem maiores.
Outro capítulo comovente é da sonegação de impostos: R$ 275 bilhões em 2016. Ao que se soma a generosidade das renúncias fiscais: R$ 271 bilhões no ano passado. Total perdido: R$ 546 bilhões. Só tem um jeito de cobrir esse rombo: reformando a Previdência para tirar “privilégios” de quem ganha até R$ 5 mil e fazer trabalhar mais esses jovens nordestinos de 60 anos bem vividos. Quantos truques existem para se driblar a receita federal? Tem um chamado de “juros sobre capital próprio”, criado também na era FHC, em 1995. A empresa pega dinheiro emprestado com seus sócios e acionistas e paga-lhes juros antes da declaração anual ao fisco. Claro que desconta esse pagamento da base de cálculo dos impostos. É uma finta. Drible de bolso. E lá se vão mais uns R$ 60 bilhões por ano. Chegamos aos R$ 600 bilhões.
Resta encontrar outros gastos para chicotear. A culpa é do INSS, das políticas sociais exageradas, do assistencialismo e dos “privilégios” das aposentadorias fáceis, caras e precoces. Tudo isso é reflexo de história de exclusão e desigualdades reproduzidas secularmente. Fica o recado geral da Oxfam para este país que se compraz na opacidade, no parasitismo e no preconceito: “Não só há discriminação negativa contra negros e mulheres dentro das mesmas faixas educacionais, mas também com as mesmas profissionais. Negros e mulheres estão concentrados em carreiras com menor remuneração, e tendem a ganhar menos que os brancos e homens mesmo nessas carreiras. Um médico negro ganha, em média, 88% do que ganha um médico branco”.
Como disse Caetano Veloso, o problema do Brasil não é homem pelado em exposição de museu, mas a desigualdade social. Obscena.JM

terça-feira, novembro 14, 2017

O imaginário de Waack


O caso Waack

      William Waack é um jornalista famoso. Até semana passada ele apresentava solenemente o Jornal da Globo. Conservador, arrogante, grosseiro com os colegas, superficial, mesmo se é glorificado como detentor de grandes conhecimentos, não gozava de estima interna. Mas brilhava nos céus da mídia. Depois que vazou o vídeo em que condenava um comportamento como “coisa de preto” ele caiu do firmamento. Não lhe tem faltado, contudo, apoio de colegas tão ou mais conservadores do que ele. Todos o defendem relativizando sua fala: apenas um comentário infeliz, uma piada de mau gosto, quem já não errou que atire a primeira pedra, inveja, linchamento por redes sociais odiosas e sedentas de sangue, patrulhamento em tempos de politicamente correto.
A Rede Globo não pensou assim e afastou imediatamente o apresentador da sua função. Sejamos francos: ninguém faz esse tipo de comentário se não acredita no que está dizendo. Não foi o vídeo que vazou. Foi o imaginário de William Waack. Irritado, sentindo-se ao abrigo de qualquer olhar ou ouvido indiscreto, ele deixou o escapar o que carrega no coração, na mente e na ideologia. Um dos defensores de Waack já relativizou em outro momento a existência de racismo no Brasil. Por que só conservadores o defendem? Por julgarem que ele está sendo vítima de esquerdistas rancorosos. Waack é celebridade. Uma celebridade sempre encontra bons advogados gratuitos. Se fosse um jornalista de chão de fábrica, não seria socorrido com tanto ânimo.
Alguns daqueles que o defendem deixam escapar nas entrelinhas: podia ter sido eu. E certamente sussurram para si mesmos: preciso tomar cuidado. O caso William Waack é exemplar: revela os sentimentos da Casa Grande com o ruído do que consideram ser a Senzala. Os tempos, porém, estão mudando e já não se pode abafar o horror como um mero deslize. O Brasil está vazando por todos os lados. Tornou-se muito difícil realizar o desejo de Romero Jucá: estancar a sangria. A nossa sangria é ampla, vai da guerra à homofobia e ao racismo passando pelo combate ao bullying. O que sangra? O que deveria ser estancado? O preconceito ou o combate a ele? Na opinião de certos críticos do politicamente correto, o problema está na reação ao abuso e não na sua causa. Não cola mais. A sensibilidade social mudou. O Brasil se move.
O impávido William Waack aplicou-se um murro na cara. A sua postura no vídeo é a de dono do mundo. Repete três vezes a sua estupidez. Reage com palavrões ao menor incômodo. Não satisfeito, fornece sua explicação racista para o que o tira do sério. Resta aos seus amigos inconformados com a indignação nas redes sociais condenar os responsáveis pelo vazamento. Eles seriam frios, calculistas, maquiavélicos, vingativos, oportunistas e ressentidos. O ator Lázaro resumiu o rolo: “Racismo é crime e ponto final”. Quando o inconsciente fala, delatando seu porta-voz, é preciso tomar consciência do tempo no qual se vive. William Waack não é vítima da intolerância atual, mas o feitor que se perdeu no tempo e acordou vociferando como outrora. JM

segunda-feira, novembro 13, 2017

Menino soldado


Perto da barbárie

      Recebo muitos livros de autores e editoras. Ganho também presentes inesperados de amigos e estudantes. Deisy Cioccari me deu um livro surpreendente intitulado “Muito longe de casa, memórias de um menino-soldado”, de Ishmael Beah. É deslumbrante pela forma, aterrador pelo conteúdo e fascinante pelo imaginário. Um relato autobiográfico. A história de um adolescente devorado pela guerra civil em Serra Leoa, na África. O que sabemos no Brasil sobre esse episódio dramático? Quase nada. O quase é por cautela. Quem se importa entre nós com essa tragédia? Quase ninguém. Ou seja, ninguém.
O autor foi resgatado e vive em Nova York. Carrega na alma e no corpo a memória do inimaginável. Passou de criança perdida num dia de passeio, com a família devastada pela guerra, a soldado recrutado pelas forças de combate aos rebeldes. Aprendeu a matar como uma máquina e a consumir drogas em quantidades industriais para melhorar a performance no seu cotidiano de menino armado. O quadro que apresenta é de barbárie absoluta. Queimar aldeias e assassinar seus moradores era a técnica de base numa guerra sem quartel, sem regras e sem fim.
Era assim: “O fogo havia começado a acalmar, e eu estava correndo pela aldeia procurando alguma coisa, alguma coisa       que eu não queria ver. Hesitante, tentava distinguir os rostos de corpos queimados, mas era impossível saber quem tinham sido um dia. Além disso, havia inúmeras deles”. Sem dúvida, uma passagem suave. Podia ser assim: “O sol mostrava partes de canos de armas e balas voando em nossa direção. Corpos tinham começado a se empilhar, uns por cima dos outros, perto de uma palmeira baixa em que sangue pingava da folhagem. Procurei Josiah. Uma granada havia lançado seu pequeno corpo do chão, fazendo aterrissar num toco de árvore. Ele sacudiu as pernas e seu grito foi se calando aos poucos. Havia sangue por toda parte”. Assim.
Incrivelmente há também muita poesia no relato. A descrição das paisagens é soberba. A investigação sobre os desvãos da perversidade humana é um catálogo de iniquidades. O ressurgimento da esperança, quando tudo era violência, brilha como um raio de sol impossível. Não se sabe ao longo do texto o que, de fato, queriam uns e outros em meio à guerra arrasadora e permanente. Não há espaço para discussão de objetivos e ideias. Tudo se resume a matar e a tentar permanecer vivo.
Eram crianças que amavam rap e banhos de rio. Eram meninos que sonhavam em amar e temiam a descoberta do amor. Eram pré-adolescentes que tinham pressa de viver. Eram filhos cujos pais ganhavam a vida duramente, mas experimentavam a felicidade de fazer parte de uma cultura ancestral e de um cotidiano de comunidade. Foram jovens que aprenderam a matar antes do aprendizado da vida. “Muito longe de casa” é um “romance” de iniciação, a iniciação ao terror, uma educação sentimental, pedagogia do horror. Nos agradecimentos, tudo se resume: “Nunca imaginei que estaria vivo até este dia, muito menos que escreveria um livro”. É a história impressionante de um sobrevivente.(JM).

domingo, novembro 05, 2017

Ditadura dos algoritmos


De dois em dois anos o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Famecos/PUCRS realiza um grande evento. De 6 a 8 deste mês acontece o 15º Seminário Internacional da Comunicação.
É uma parceria com a Universidade de Montpellier, França.
Ou com a Universidade Paris Descartes.
Sempre traz convidados renomados, de Jean Baudrillard, Michel Maffesoli, Edgar Morin, Gilles Lipovetsky, Pierre Lévy, Régis Debray, Dominique Wolton a grandes nomes dos Estados Unidos, da Itália, da Espanha e da América Latina. Cabe todo mundo. Quem tem o que dizer, vem.
É o principal evento de programa da área de comunicação no Brasil.
Nesta edição, sobre intermídia transmídia, crossmidia, os convidados são Lars Elleström da Linnaeus (Suécia), Derrick de Kerckhove (Canadá), Claudia Attimnonelli (Itália), Philippe Joron, Fabio la Rocca e Vincenzo Susca (Universidade de Montpellier). Todos estão publicando livros no Brasil ou têm obras em português. JM

quinta-feira, novembro 02, 2017

Anos 60


Godard, o ícone

      Fiz minha educação universitária em vários níveis, graduação, pós-graduação e pós-doutorado, como estudante de jornalismo, história, antropologia e sociologia, cultuando vanguardas. Quando se falava em música, a gente louvava o experimentalismo de John Cage. Quando se falava em teoria, gritávamos “viva, Guy Debord”. Quando se comentava literatura, vibrávamos com certos escritores franceses. Quando pude, fiquei amigo de Alain Robbe-Grillet, que ajudei a trazer ao Festival de Gramado, considerado o “papa” do Novo Romance, de quem traduzi “Os últimos dias de Corinto”. Também traduzi “O bonde”, de prêmio Nobel Claude Simon. Quando o papo era cinema, Jean-Luc Godard era o nome. Mais do que um nome, uma lenda que tinha seu próprio fantasma.
Esse mesmo Godard que é tema do filme “O formidável”, dirigido por Michel Hazanavicius, um cineasta com gosto para desmontar mitos. A tradução do título, como é frequente no Brasil, enfeita um pouco: “le redoutable” literalmente é o temível. Em sentido figurado, o insuportável. Em bom português, no caso, o mala. Por que Godard, ícone de um cinema renovador – “Acossado” continua sendo um dos meus filmes favoritos –, aparece como mala num filme de hoje? Descontado o fato de que os apaixonados por cinema de entretenimento fácil nunca gostaram de Godard, o resto corre por conta da sua conversão, em 1967-1968, ao maoísmo ou “maloísmo”. Ele passa de cineasta a militante e perde o humor, a maleabilidade, o tom e a bela esposa vinte anos mais jovem.
O filme de Hazanavicius se baseia em livro de Anne Wiazemsky, atriz de “A chinesa”, neta do prêmio Nobel da literatura François Mauriac, a apaixonada que se desencantou com o “maloísmo” do marido. É possível que para muitos dos meus leitores Godard seja apenas um nome sem maior relevância afetiva. Para outros, somente um chato. Godard vive. Superou o maoísmo. Terá superado o “maloísmo”? Escrevo e isso e me contraio como quem tomou ou se deu um soco. Godard impregna a minha juventude libertária. Era o cineasta intelectual que havia rompido com o simplismo das intrigas banais e das historinhas com início, meio e fim. Isso tudo numa época em que eu me recusava até a ler romances policiais por não me pareceram alta literatura. O tempo passa, “todo cambia”, menos as lembranças de uma fase em que Godard era tudo.
Em nossa cartilha era Godard num plano e Glauber Rocha no outro. Eram os tropicalistas e os concretistas numa página e os formalistas na outra. Queríamos uma nova ética e uma nova estética, especialmente depois do terceiro pingado, um martelinho de cachaça com limão que tomávamos no bar do Mazza, na Bento Gonçalves, em frente à PUC. Confesso que me aconteceu algo como a conversão de Godard ao maoísmo. Eu fui do convencionalismo palomense ao experimentalismo parisiense numa noite. Quando mudei, mudei radicalmente. Virei fundamentalista. Amava principalmente os filmes e livros que ainda não tinha lido, embora lesse um livro por noite em busca do tempo perdido. Quando fui morar em Paris, vi todos os filmes da Nouvelle Vague numa minúscula televisão no “Cinema da Meia-Noite”. Era tarde para não amar. Amei.
Amo até hoje. A ilusão é que se foi.JM