quinta-feira, novembro 02, 2017

Anos 60


Godard, o ícone

      Fiz minha educação universitária em vários níveis, graduação, pós-graduação e pós-doutorado, como estudante de jornalismo, história, antropologia e sociologia, cultuando vanguardas. Quando se falava em música, a gente louvava o experimentalismo de John Cage. Quando se falava em teoria, gritávamos “viva, Guy Debord”. Quando se comentava literatura, vibrávamos com certos escritores franceses. Quando pude, fiquei amigo de Alain Robbe-Grillet, que ajudei a trazer ao Festival de Gramado, considerado o “papa” do Novo Romance, de quem traduzi “Os últimos dias de Corinto”. Também traduzi “O bonde”, de prêmio Nobel Claude Simon. Quando o papo era cinema, Jean-Luc Godard era o nome. Mais do que um nome, uma lenda que tinha seu próprio fantasma.
Esse mesmo Godard que é tema do filme “O formidável”, dirigido por Michel Hazanavicius, um cineasta com gosto para desmontar mitos. A tradução do título, como é frequente no Brasil, enfeita um pouco: “le redoutable” literalmente é o temível. Em sentido figurado, o insuportável. Em bom português, no caso, o mala. Por que Godard, ícone de um cinema renovador – “Acossado” continua sendo um dos meus filmes favoritos –, aparece como mala num filme de hoje? Descontado o fato de que os apaixonados por cinema de entretenimento fácil nunca gostaram de Godard, o resto corre por conta da sua conversão, em 1967-1968, ao maoísmo ou “maloísmo”. Ele passa de cineasta a militante e perde o humor, a maleabilidade, o tom e a bela esposa vinte anos mais jovem.
O filme de Hazanavicius se baseia em livro de Anne Wiazemsky, atriz de “A chinesa”, neta do prêmio Nobel da literatura François Mauriac, a apaixonada que se desencantou com o “maloísmo” do marido. É possível que para muitos dos meus leitores Godard seja apenas um nome sem maior relevância afetiva. Para outros, somente um chato. Godard vive. Superou o maoísmo. Terá superado o “maloísmo”? Escrevo e isso e me contraio como quem tomou ou se deu um soco. Godard impregna a minha juventude libertária. Era o cineasta intelectual que havia rompido com o simplismo das intrigas banais e das historinhas com início, meio e fim. Isso tudo numa época em que eu me recusava até a ler romances policiais por não me pareceram alta literatura. O tempo passa, “todo cambia”, menos as lembranças de uma fase em que Godard era tudo.
Em nossa cartilha era Godard num plano e Glauber Rocha no outro. Eram os tropicalistas e os concretistas numa página e os formalistas na outra. Queríamos uma nova ética e uma nova estética, especialmente depois do terceiro pingado, um martelinho de cachaça com limão que tomávamos no bar do Mazza, na Bento Gonçalves, em frente à PUC. Confesso que me aconteceu algo como a conversão de Godard ao maoísmo. Eu fui do convencionalismo palomense ao experimentalismo parisiense numa noite. Quando mudei, mudei radicalmente. Virei fundamentalista. Amava principalmente os filmes e livros que ainda não tinha lido, embora lesse um livro por noite em busca do tempo perdido. Quando fui morar em Paris, vi todos os filmes da Nouvelle Vague numa minúscula televisão no “Cinema da Meia-Noite”. Era tarde para não amar. Amei.
Amo até hoje. A ilusão é que se foi.JM

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