quarta-feira, dezembro 26, 2018

Final de 2018



 Diz-se que uma imagem fala mais do que mil palavras. Resta encontrar uma imagem que diga isso. O que falar então de certas frases de fim de ano? O futuro superministro da Economia, Paulo Guedes, disparou: “Tem que meter a faca no Sistema S”. O empresariado presente esquivou-se. Guedes enterrou o punhal: “Como você pode falar em cortar isso e aquilo e não cortar o Sistema S? Tem que meter a faca no Sistema S também. Vocês estão achando que a CUT perde o sindicato e aqui fica tudo igual”. Diante do horror nos olhos dos amigos, tentou aliviar: “Acho que tem que cortar pouco para não doer muito”. Já o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) apresentou projeto de lei propondo que alunos de universidades públicas sejam submetidos a exames toxológicos todos anos antes da matrícula.
Em caso de aprovação, não deveria valer o mesmo para deputados e senadores? Não caberia também um teste de QI para eleitos? Não confundir QI com o popular Quem Indica. Mundo curioso. O agora diplomado senador Flávio Bolsonaro, pressionado por repórteres sobre funcionários do seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro que tinham outro emprego em horário de expediente, saiu-se com esta: “Todo mundo trabalhava. Aqui não é quartel. Nada impede de a pessoa ter uma outra atividade. Sem problema nenhum. Em quartel é que se bate ponto. Entra tal hora, sai tal hora”. Será que o primeiro filho nunca visitou uma empresa?
E esta do site do Ministério Público do Rio Grande do Sul em matéria sobre condenação de um estudante de medicina por estupro virtual: “Esperar Zero Hora dar”. Alguém se apressou e disparou a publicação antes do combinado sem tirar o aviso comprometedor. O que pensar? Que o MP tem seus bruxinhos como se diz no futebol? Deve ter sido o estagiário. Só pode. O presidente eleito Jair Bolsonaro abalou os cursos de antropologia com esta afirmação: “O índio quer ser o que nós somos, o índio quer o que nós queremos”. Nós, alguns de nós, queremos o que eles têm no solo e no subsolo. O general Santos Cruz, que será ministro da Secretaria de Governo de Bolsonaro, sacudiu quarteis falando da Previdência: “Têm categorias que precisam ceder alguma coisa, caso do Judiciário, do Ministério Público, de todo o funcionalismo público. E aí entram os militares no meio. A idade de aposentadoria por exemplo tem que ser mexida”. Se o general falou…
Até José Dirceu resolveu fazer frases. Disse. “Vamos deixar o Bolsonaro sentar na cadeira. Ela queima”. O secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, general Richard Nunes, declarou há alguns dias que já se sabe quem matou Marielle e Anderson. Só faltam as provas. Parece que algumas sumiram. Ele tranquilizou: “A polícia não é sequer é o pior problema. Hoje temos presos no Rio autoridades de todos os poderes e todos os escalões. A corrupção se alastrou de maneira completa. Seria até estranho que a polícia não estivesse envolvida nisso”. É tanta frase incrível que o humor bate à porta. Sorria, você está sendo gozado.JM

sábado, dezembro 22, 2018

Cheiro de laranjal!


Era uma vez um lugar tranquilo onde nada acontecia.
Até que surgiu algo inusitado, digno de romance de realismo fantástico. Conto o que apurei. De longe, parecia um laranjal. Tinha cheiro e cor de laranjal. Mas, como qualquer um sabe, é difícil saber se um laranjal é um laranjal. Depende do ponto de vista. O laranjal do vizinho quase nunca deixa dúvida: é laranjal. Já o da gente sempre provoca incerteza. A situação despertou a atenção de todo mundo: seria ou não um laranjal? A bolsa de apostas de Londres explodiu. Mais de 70% dos jogadores apostavam em laranjal. Ganharia uma fortuna quem apostasse no contrário. Havia quem tivesse certeza de que era um laranjal, mas sustentasse o oposto por questões afetivas e até ideológicas. É incrível como pode haver ideologia em tudo. Até em laranjal. Cautelosos perguntavam: o que é mesmo um laranjal?
A resposta vinha com prudência: um conjunto de laranjeiras. Começava a polêmica: de laranjeiras ou de laranjas? O dono do suposto laranjal de nada sabia. Ou dizia não saber. De onde viera aquele laranjal? Que laranjal? Quem garante que é um laranjal? Que história é essa de laranjal? No meio da confusão, sempre havia alguém para perguntar de modo brusco:
– Quem plantou esse laranjal?
O cara tinha sumido. Prometia aparecer com uma explicação plausível que, obviamente, provaria não ser o laranjal um laranjal. Nem tudo o que é reluz é ouro. Nem todo amarelo é laranja. A história arrastava-se.
A cada dia apareciam novas informações que pareciam confirmar que era mesmo um laranjal.
Apesar disso, ninguém se atrevia a gritar como num desenho:
– Madeira!
O que faz um laranjal ser um laranjal e não outra coisa? A natureza do fenômeno. Quando se espreme, sai suco. Fica o bagaço. Ao longo do tempo, vai pingando. Mas pinga com método, periodicidade, regularidade, padrão. Um aperta, outro recolhe, um terceiro suga. É algo coordenado como uma linha de montagem. Nada se perde. Tudo se aproveita. A cada um conforme as suas possibilidades e responsabilidades. Uma das características do laranjal é a ubiquidade. Palavra difícil? É a capacidade de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. No exterior e no interior. Longe e perto. Fazendo, não fazendo, desfazendo e refazendo.
Já disse que de longe parecia um laranjal. De perto, também. Mesmo assim seria precipitado tirar conclusões. Em se tratando de laranjal, nunca se deve prejulgar. A complexidade é tamanha que pode induzir a erro. Já se começava a citar Gabriel García Márquez para falar da coisa. Sem a menor criatividade, jornais levianos falavam em “crônica de um laranjal denunciado”. Todo dia havia laranja nova, madura ou verdinha, chupada, de umbigo, lima, da mesma família, de outros tipos, uma loucura. Parte da população incrivelmente parecia não ver o laranjal. Interpelada, regia agressivamente falando de outros laranjais. Um ingênuo ficava perguntando:
– Um laranjal encobre o outro?
Foi assim. O laranjal estava lá. Mas não se sabia se era laranjal.
O laranjeiro – ou seria o laranja? – não estava maduro para aparecer.JM

sexta-feira, novembro 30, 2018

O Rio se f...errou?


      É do palácio para a cadeia. Sem transição. O Rio de Janeiro continua lindo. A imagem do cartão postal mudou. O Corcovado agora concorre com governador de braços abertos atrás das grades. Houve um tempo em que a prisão se dava depois de terminado o mandato. Não há mais como esperar. Salvo no caso do senador Aécio Neves. Esse teve tempo até para se eleger deputado. O governador carioca Luís Fernando Pezão acrescentou uma linha no seu currículo: integrante de organização criminosa. O Brasil inova. Dá para imaginar um diálogo de Sérgio Cabral com Pezão no corredor das celas:
– Demorou, camarada!
– Você está fazendo escola, mermão.
Pezão é o quarto governador do Rio de Janeiro a ser hospedado por conta do erário público numa prisão. Antes dele, o casal Garotinho e Sérgio Cabral preencheram ficha nos hotéis gradeados da cidade maravilhosa. Pezão é o primeiro a ir direto do gabinete de governador para o xilindró. Trocou carro oficial blindado por camburão. Uma distinção sem precedentes. Chama a atenção o prontuário do paciente segundo a Procuradora-Geral da República: “Ficou demonstrado que, apesar de ter sido homem de confiança de Sérgio Cabral e assumido papel fundamental naquela organização criminosa, inclusive sucedendo-o na sua liderança, Luiz Fernando Pezão operou esquema de corrupção próprio, com seus próprios operadores financeiros”. Um homem, como se vê, de personalidade própria e com capacidade de organização, capaz de definir o próprio destino e de gerir os seus negócios com autonomia.
Que outro lugar pode oferecer a turistas histórias tão pitorescas? O guia pode criar um circuito de governadores presos: casa, palácio, cadeia. Do Leblon a Bangu, da Barra da Tijuca a Benfica, das Laranjeiras ao inferno. Programas de auditório podem explorar esse rico filão fazendo perguntas valendo muito dinheiro sobre os governadores do Rio de Janeiro presos com pontos extras para quem acertar os valores amealhados pelos meliantes diplomados pelo voto popular e destituídos pela polícia e pela justiça em flagrante. Pode cair até em concurso. A letra da música também precisa ser reescrita: “Mas o malandro pra valer, não espalha, reinventou a navalha, tem secretários, voto e tal, dizem as más línguas que ele até governa, mora no palácio, chacoalha seu ócio em helicóptero oficial”.
Sempre se deve procurar o lado positivo das coisas. Nunca governadores de um Estado tiveram uma visão tão profunda do sistema penitenciário local. Eles poderão escrever relatórios detalhados com sugestões para as autoridades em troca de remissão de pena. Outro aspecto a considerar é que existe agora algo mais sujo no Rio de Janeiro do que a Baía da Guanabara: a ficha corrida de governadores. Onde foi que tudo virou? Como se pergunta Zavalita, personagem do fantástico romance “Conversa na Catedral”, de Mario Vargas Llosa, “em que ponto o Peru se f…errou?” A palavra usada é outra, mais coloquial, mais carioca até. Quando foi que o Rio de Janeiro se ferrou? Em que ponto o Rio se cravou?JM

quarta-feira, novembro 28, 2018

Privilégio da toga!


Michel Temer sancionou o aumento dos ministros do STF, que repercute sobre o salário de muita gente no topo da pirâmide. Imediatamente o ministro Luís Fux, um dos beneficiados, extinguiu o indecoroso auxílio-moradia da magistratura, que mantinha com uma canetada monocrática para bem dos seus e indignação dos meus e dos teus, caro leitor. Foi uma das chantagens mais obscenas da pornográfica história brasileira. Uma espécie de toma-lá-dá-cá nas alturas em nome da independência dos poderes. O espírito de Montesquieu foi tratado a pontapés. Se não tem aumento, o judiciário não faz greve nem paga as contas atrasado. Cria para si uma compensação.
Quem garante a legalidade da manobra? Ele mesmo. Acabou-se.
O mais interessante dessa história de terror é que beneficiados nunca deixaram de reconhecer que se tratava de um estratagema, de uma compensação, de um aumento de salário disfarçado, sem imposto de renda. O vil mortal não tem uma barbada dessas para usar quando sente a água lhe bater no queixo. Se não cumprir suas obrigações, o judiciário trata de enquadrá-lo. A regra da magistratura é mínima: se é legal, eu quero. Se eu quero, é legal. Quanto juiz dono de casa de alto nível na cidade, na praia e na serra, recebendo auxílio-moradia, mandou despejar miseráveis de prédios públicos abandonados!? E o futuro: se o salário ficar defasado novamente, sempre é possível, voltará o auxílio-moradia com outro nome para não dar na vista ou para que não se fale de eterno retorno do mesmo?
Magistrados costumam ser campeões de racionalização. A racionalização é uma adulteração da racionalidade, um argumento que parece lógico e recepcionável não o sendo. Um sofisma. Chega a parecer infantil. Como crianças, batem pé. É correto receber auxílio-moradia quem mora em casa própria? Não, mas nosso salário está desfasado, etc. A subjetividade perpassa as práticas do judiciário. Um ministro do STF pode ficar anos sentado em cima de uma questão do interesse da sua categoria sem que nada o obrigue a mexer-se na cadeira. Não empurra com a barriga. Retém com os glúteos. A imagem não é agradável. Metáfora de mau gosto. Como o auxílio-moradia. O que a plebe pode fazer? Nada.
Sim, pode fazer piada. É só.
Há representantes das corporações togadas e adjacentes inconformados. Queriam o aumento e a manutenção do auxílio-moradia. Consideram que saíram perdendo. Feitas as contas, vão receber um pouco menos. Queriam tudo. Isso não corrompe a ideia que se deve ter de um poder da República? Em 1993, Marie-Noëlle Lienemann, ministra e depois senadora, publicou um livro intitulado “Os canibais do Estado” no qual mostrava como a elite tecnocrática francesa apropriava-se dos melhores postos e dos recursos da nação cobrindo-se de privilégios e de auxílios fantásticos.
O livro era local. O título, universal. Luís Fux mostrou ontem que, como ministro do STF, ele é um excelente representante sindical da sua categoria na suprema corte. Tem tudo para fazer uma carreira política.
Salvo que isso requer votos e alguma capacidade de falar com a plebe.JM

quinta-feira, novembro 08, 2018

Pior emprego do mundo!


Vale a pena ler “O pior emprego do mundo – 14 ministros da Fazenda revelam como tomaram as decisões que mudaram o Brasil e mexeram com o seu bolso” (Planeta), de Thomas Trautmann. Jornalista, o autor assessorou Antonio Palocci, Dilma Rousseff e Henrique Meirelles. Entrevistou os ministros de que trata o seu livro: de Ernane Galvêas e Delfim Neto a Meirelles passando por João Sayad, Zélia Cardoso de Mello e FHC. Durante parte do regime militar o poder sobre a economia ficou com o Planejamento.
O leitor encontrará muitas anedotas divertidas. Conhece a Doutrina Costa e Silva? É simples: quando Roberto Campos propôs ao ditador a autonomia do Banco Central, recebeu como resposta: “O guardião da moeda sou eu”. Conhece a lei MHS? Mario Henrique Simonsen, que seria sócio do Banco Bozano, foi ministro de Geisel. Ele formulou esta “lei”: “Todo projeto com dinheiro público envolve uma comissão. Às vezes, a obra só existe para alguém receber a comissão. Nesses casos, é mais barato pagar logo a comissão e não fazer obra nenhuma”. Era um eufemismo para propina.
Para ser ministro Simonsen ganhou um superministério. Para arrumar o Brasil, pediu licença para uma recessão de um ano e meio ou dois. Era desbocado. Chamou de “Bostabrás” a ideia de César Cals, ministro das Minas e Energia, de explorar o gás liberado pelo esterco. Contava em “andreazzas” os gastos que lhe pareciam absurdos propostos por Mário Andreazza. Este, garantia que Simonsen entendia muito de aço e nada de gente. Era um tempo de papo reto. Figueiredo perguntou a Simonsen: “Você acha que meu governo está uma m? Não obteve resposta. O ministro pediu as contas, voltou para o Rio de Janeiro e foi para a praia. Acossado pela imprensa, deu entrevista de sunga. Apertado, recorreu ao humor do soprano vaiado: “Vocês ainda não ouviram o barítono”. O barítono atendia pelo nome de Delfim Netto.
Convidado por João Figueiredo para substituir Simonsen, Ernane Galvêas ouviu esta consideração do último ditador: “O Geisel fez um pinto botar um ovo de avestruz. Vá lá e costura o pinto”. Delfim Netto também não usava subterfúgios. Ia direto ao ponto: “O Geisel era honesto, decidido, mas tinha uma pretensão… achava que era matemático porque sabia calcular o seno de 30 graus”. Parafraseando outro, era só um militar falando de economia. Delfim ficou célebre também por esta pérola: “Nunca fiz manipulação de preços. Só de oferta”. Transferia produtos de um lugar para outro de modo a interferir no cálculo da inflação medida no Rio de Janeiro.
Simonsen era fogo. Perguntado sobre o II PND, o grande Plano Nacional de Desenvolvimento, menina dos olhos de Geisel, respondeu: “Não leio ficção”. Delfim falava a linguagem do mercado. De volta ao topo, depois de um exílio dourado em Paris, discursou: “Senhores, preparam seus arados e suas máquinas, nós vamos crescer”. Por que mandar na economia seria o pior emprego do mundo? Um ministro da Fazenda, destaca Trautmann, controla dezenas de índices. O presidente só um: o da sua popularidade. Paulo Guedes, que vem do Bozano e terá superministério, que não bobeie. Ser ministro da Fazenda é tão ruim que todo mundo quer.JM

quarta-feira, novembro 07, 2018

Mundo antigo


 Os dias cinzas me fazem ler um pouco mais. É o melhor antidepressivo que conheço. Leio e viajo no tempo. Aos poucos, respiro ares renovados e puros. Sinto-me na montanha. Parei, no sábado, com o céu plúmbeo, para reler belas páginas de “Rubicão, o triunfo e a tragédia da república romana”, do pesquisador britânico Tom Holland. É muito melhor do que ficar na internet lendo declarações de Olavo de Carvalho e Alexandre Frota. Roma nunca deixará de ser parâmetro para o pior e para o melhor em quase tudo.
Era outro mundo. Sim, era outro mundo. Dos doze césares, só Cláudio não teve amantes do mesmo sexo. Nero teve dois maridos simultâneos. Eram loucos os romanos? Eram ousados. Vejamos esta passagem de Holland: “Na Gália, lutando contra os bárbaros, César havia adotado a tática de lançar-se rapidamente e com força sobre o inimigo quando este menos esperava, por mais arriscado que isso fosse. Agora, assumindo o risco supremo de sua vida, ele planejava usar a mesma estratégia contra seus concidadãos”.
Que medo! Como é tempo de Feira do Livro em Porto Alegre, meu carinho por esses objetos encadernados, ameaçados de extinção, aumenta. A sede de poder não poupa os de casa. Tento aprender com eles. Sou lento. Se não capto o mais profundo, absorvo o mais simples. Por exemplo, este parágrafo de Holland: “Com crise ou sem crise, as estações do ano chegavam e partiam como sempre. A primavera, florida e cristalina, era a época em que a sociedade elegante partia para o campo. Em abril do ano 44 a.C. não foi diferente. Nas semanas que se seguiram ao assassinato de César, Roma começou a esvaziar-se”. Vida que segue. Ditador morto, rei posto. Fim da República. Começo do Império. César veio, viu, venceu e morreu. Ponto.
A sorte, lançada, não para mais de rolar.
César chegara ao poder numa aliança com Pompeu e Crasso. Populista, horrorizou a elite romana conservadora. Crasso cometeu um erro tão grande em campo de batalha que perdeu a vida. Mas criou o erro crasso. Pompeu rompeu com o ex-sogro Júlio César. Quis disputar o poder com ele. Não deixou de ser um erro crasso. Acabou assassinado ao chegar no Egito. O poder não dorme. Como as estações do ano. Consta que César morreu por não ter sabido escutar a opinião dos adversários. Cansados de guerra pelo poder os cidadãos partem em férias. O verão não está longe. Com crise ou sem crise as praias chamarão. Na Roma pós-César havia rico louco para sair da clausura da sua mansão. As flores do campo precisavam ser colhidas e cheiradas. A tragédia ficava para trás.
Quem pode segurar esse vitalismo que se impõe como uma fera? Pensariam em que os romanos nas suas residências campestres? Tom Holland fechou o seu livro com uma boa sugestão: “’O fruto do excesso de liberdade é a escravidão’, dissera Cícero em um lamento – e quem poderia supor que sua geração, a última de uma República livre, viesse a comprová-lo? Mas o que dizer sobre o fruto da escravidão? Quanto a isso, caberia a uma nova geração, a uma nova era, responder”. Ainda cabe. Talvez depois do verão. Quanto tempo levará para que Bolsonaro desista de ser Trump ou César?JM

terça-feira, novembro 06, 2018

Escola sem reflexão?


Tenho feito um esforço para entender a ideia de escola sem partido. A verdade é que eu não sabia da existência de escola com partido. Conheço professores de esquerda e de direita. Ainda não sei se a intenção é proibir estudantes de fazer manifestações políticas em ambiente escolar, impedir professores de apoiar algum partido ou de abordar certos temas ou de ter certas posições sobre determinados assuntos. Já ouvi que se pretende até mesmo definir os livros que podem ou não figurar na biblioteca escolar. Ou será que se trata exclusivamente de interditar posturas de esquerda? O que ser quer mesmo: neutralidade ou neutralização da possibilidade de dizer verdades?
Por que se deveria impedir manifestações políticas de estudantes? Fica nas entrelinhas do pensamento geral essa tentação. Eles são muitos e com olhares diferentes. A escola deve pregar a alienação e o desinteresse por eleições? Não imagino professores pedindo voto em sala de aula. Se acontece, deve ser exceção. A questão dos enfoques é preocupante. O que deve dizer um professor aos alunos: que o Brasil foi descoberto, ocupado ou invadido pelos portugueses? Na ótica da direita, por lógica, a chegada dos portugueses deve ser vista obrigatoriamente como invasão na medida em que o território tinha dono. Eram outros tempos?
Ah, bom! O que deve dizer um professor sobre a abolição da escravatura no Brasil? Que foi uma conquista dos negros? Que foi uma mudança do capitalismo? Que foi uma concessão da generosa princesa Isabel? Se o professor optar exclusivamente pela última alternativa será criticado pelos defensores da escola sem partido? Que deve dizer o mesmo professor sobre a formação do país: que se estruturou com base numa harmonia entre três “raças”: o índio, o negro e o branco? Ou que o Brasil se construiu a partir da busca de submissão do índio, reduzido a uma parcela mínima, e da entrada forçada do negro como escravo em favor da dominação branca?
Dizer que o branco quase exterminou o índio na América e fez a acumulação primitiva do seu capital explorando o negro é tomar partido indevidamente? O professor apresentará as diferentes teorias e leituras sobre o assunto. Se o aluno, depois de tudo, perguntar qual a sua posição, o que o professor deverá dizer? Tenho lido que as universidades, especialmente as públicas, são dominadas por esquerdistas. Se for o caso, o que se deve fazer? Amordaçá-los? Por que a direita não tenta conquistar esses corações e mentes? Será que os seus argumentos não convencem estudantes cheios de ideais e professores acostumados a pesquisar?
O que deve dizer um professor sobre Caxias, modelo de pacificação deo presidente eleito Jair Bolsonaro? Que foi um pacificador de fato ou exterminador de negros e um disseminador de notícias falsas para intrigar adversários? Caxias sufocou várias rebeliões durante o período regencial. Esmagou a Balaiada, no Maranhão, um movimento popular, atuou em São Paulo, Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, onde participou da combinação para massacrar lanceiros e infantes negros em Porongos. O que deve ensinar o professor sobre isso tudo?
Deve mostrar aos alunos este balanço da Balaiada feito pelo próprio Caxias, que destaco em meu livro História Regional da Infâmia: “Não existe hoje um só grupo de rebeldes armados, todos os chefes foram mortos, presos ou enviados para fora da província… Se calcularmos em mil os seus mortos pela guerra, fome e peste, sendo o numero dos capturados e aprisionados durante o meu governo passante de quatro mil, e para mais de três mil os que reduzidos à fome e cercados foram obrigados a depor as armas depois da publicação do decreto de anistia, temos pelo menos oito mil rebeldes; se a estes adicionarmos três mil negros aquilombados sob a direção do infame Cosme, os quais só de rapina viviam, assolando e despovoando as fazendas, temos onze mil bandidos que com as nossas tropas lutaram, e dos quais houvemos completa vitória. Este cálculo é para menos e não para mais: toda esta província o sabe”. Deve o professor dizer que isso é extermínio ou por civismo aliviar a barra?
Ouço que escolas propagam a chamada ideologia de gênero. Uma certa Simone de Beauvoir escreveu, em 1949, que não se nasce mulher. Torna-se. Parece que ela estava falando dos papéis sociais. Deve-se evitar falar dessa senhora em sala de aula? É permitido falar que nem todos se reconhecem na anatomia de nascimento nem se sentem atraídos pelo diferente? A escola deve realmente servir somente para ensinar línguas, geografia e matemática? Há tanta coisa que me escapa. Não entendo a obsessão contra Paulo Freire. Releio o que ele escreveu. Fico com a impressão de que ele diz algo evidente: o aluno se interessa mais pelo que toca a sua realidade.
A quem interessa reduzir a escola ao ensino de matemática e português?JM

segunda-feira, novembro 05, 2018

Marmiteiros



      As eleições de 2018 foram dominadas pelas fake news. Alguém duvida?
As redes sociais potencializaram um velho costume: divulgar notícias falsas para tentar induzir eleitores a rejeitar candidatos. Essa tendência tem a idade da fofoca. É claro que graças às tecnologias atuais a possibilidade de atingir o país inteiro em segundos enlouquece os gênios do mal. A primeira grande fake brasileira talvez tenha sido aquela inventada por Hugo Borghi, em 1945, para favorecer Eurico Gaspar Dutra e liquidar o brigadeiro Eduardo Gomes. Na época, militares polarizavam a disputa eleitoral.
Empresário, acusado de receber empréstimos privilegiados do Banco do Brasil, Borghi financiou a campanha do “queremismo”, termo criado para defender a permanência de Getúlio Vargas no poder. Como não foi possível levar a cabo essa ideia, passou-se ao “plano B”. Na hora certa, Getúlio mandou votar em Dutra. O adversário era Eduardo Gomes, da UDN, uma espécie de Partido Novo de então, ou de Novo, MBL e PSL juntos. Borghi teve uma ideia maligna: mandou imprimir e inundar o país com panfletos divulgando uma suposta declaração de Eduardo Gomes: “Não preciso dos votos dos marmiteiros”. Era desprezar a massa que comia quentinha no trabalho.
O estrago foi imenso. Dutra disse que nada tinha a ver com o negócio. Não podia controlar os seus apoiadores. A frase de Eduardo Gomes, proferida no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (candidatos falavam em teatros naqueles tempos), era um pouquinho diferente: “Não necessito dos votos dessa malta de desocupados que apoia o ditador para eleger-me presidente da República”. De qualquer maneira, um enorme erro de marketing. Eduardo Gomes era dado como vencedor certo do pleito. Faltava um mês para o comparecimento às urnas. Borghi construía suas fake news com esmero.
Pegou a expressão “malta” da declaração verdadeira de Gomes e procurou em dicionários todos os sentidos atribuídos a ela. Descobriu um que lhe servia: “Grupo de operários que percorrem as linhas férreas levando suas marmitas, marmiteiros”. Logo, podia dizer que não estava mentindo. Esse cuidado se perdeu. Para que tanto mimimi se é para mentir mesmo? A fake de Borghi foi difundida em rádios e em jornais. Não teve erro. Dutra virou o jogo. Era um homem simples, meio tosco. Foi criticado, durante seu governo, pelo mau uso das reservas cambiais brasileiras. Fortaleceu as relações com os Estados Unidos. Enfim, essas coisas de um passado remoto.
A piada mais famosa sobre Dutra também era fake. Dutra recebe o presidente estadunidense Truman no Brasil. O norte-americano cumprimenta: “How do you do, Dutra?” O brasileiro responde: “How tru you tru, Truman?” A mais marcante decisão tomada ao longo do seu mandato foi a proibição dos jogos de azar no país. Dutra teria assinado o decreto por influência da líder do lobby contra o jogo: sua esposa Carmela, conhecida como Dona Santinha. Ela também teria determinado o fechamento do Partido Comunista Brasileiro. Os eleitos tiveram seus mandatos cassados. Outros tempos!JM

sábado, novembro 03, 2018

Face a face


Moro, o imparcial com lado
A Mosca Azul
Machado de Assis
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"
Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranquilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
Faz tempo que a mosca azul picou Sérgio Moro. Ele sempre se apresentou como um juiz imparcial. Por simples circunstância, nunca condenou tucanos. Por outra circunstância dessas da vida o seu foco foi o PT. Por necessidade, teve de publicar aquele grampo ilegal que levou ao impeachment de Dilma Rousseff. Por outra reles circunstância, condenou Lula o mais rápido possível com escassez ou falta de provas. Foi só coincidência que o TRF-4 tenha confirmado sua sentença em tempo mais rápido ainda. Moro sempre foi imparcial e neutro. Por circunstância, teve de cancelar uma ordem de instância superior para impedir a soltura de Lula. Azar da hierarquia e da falta de atribuição legal. Nunca lhe passou pela cabeça influenciar eleitores. Não passou de coincidência a sua liberação da delação de Antonio Palocci bem no meio da campanha eleitoral. É claro que ele não pretendia prejudicar as chances do petista Fernando Haddad.
Sérgio Moro nunca teve lado. Ele sempre foi tão imparcial e apartidário quanto o MBL, Kim Kataguiri, Alexandre Frota e Janaína Paschoal. Não passa, portanto, de coincidência que Jair Bolsonaro, presidente eleito pela extrema-direita, tenha querido convidá-lo para seu ministério de técnicos imparciais. Sem as decisões circunstanciais e neutras de Moro, Bolsonaro talvez não tivesse chegado à presidência da República. A imprensa internacional não consegue compreender o Brasil. Algumas manchetes de hoje: Financial Times: "Bolsonaro nomeia juiz que ajudou a prender Lula". The Times: "Bolsonaro promete emprego sênior para o juiz que prendeu o seu rival”. Malditos comunistas britânicos. Arre!
O jornal francês de direita, uma espécie de Estadão sem o golpe de 1964, foi descritivo: “O juiz que derrubou Lula será ministro da Justiça de Bolsonaro”. Nada mais justo? A justiça brasileira está de cara. No popular, Moro saiu do armário, passou recibo, revelou o tamanho da sua vaidade. Bolsonaro entregou: “Parecia um jovem universitário recebendo diploma”. Mais feliz do que pinto no lixo. Deslumbrado com o poder recebido. Se faltava um atestado, está dado. Moro, o imparcial, revelou seu lado.
Foi a mosca azul.JM

quinta-feira, novembro 01, 2018

Invisíveis



      Há um grande filme em cartaz: “Os invisíveis”, dirigido pelo alemão Clau Räfle. Fui vê-lo no último sábado. Conta a história de quatro judeus que viveram escondidos para escapar à perseguição nazista. É uma história humana sensível e altamente dolorosa. Eles só conseguiram sobreviver graças à ajuda de alemães que se rebelaram no cotidiano, na medida das suas parcas forças, contra o horror hitlerista. O que o nazismo mais odiava e combatia? A diferença, a diversidade. Ideologia de extrema-direita, assentada no racismo e no darwinismo social, não tolerava a liberdade de pensamento.
As principais características do nazismo foram o antissemitismo, o eugenismo, o culto e o mito da superioridade racial do homem branco, o antimarxismo, a adoração fanática ao grande líder, o aparelhamento total da estrutura pública, da justiça ao sistema escolar, para propagação da ideologia do sistema, o Estado forte, a rejeição ao conceito de luta de classes e a defesa da propriedade privada. Os ideólogos nazistas defendiam uma sociedade dividida em classes sociais, recusavam o igualitarismo marxista e acreditavam na meritocracia como mecanismo de estratificação social e de legitimação da propriedade privada. O nazismo era nacionalista, antipacifista e antidemocrático. Foi a grande chaga do século XX.
Edgar Morin, que participou da resistência armada ao nazismo, publicou, já em 1946, um belo livro sobre o que viu: “O ano zero da Alemanha”. Vale citá-lo longamente: “Não há dúvida de que havia gradações dentro do nazismo. Existiram nazistas ativos, nazistas formais e nazistas constrangidos (como foi o caso de inúmeros estudantes)”. Mais: “Havia os que já eram nazistas antes de 1933 e os que se tornaram nazistas após 1937. Os americanos consideram os velhos e duros nazistas anteriores a 1937 como os mais perigosos. Muitos alemães tendem a considerar que os que se tornaram nazistas depois de 1937 são mais culpáveis, pois não tinham escusas para se deixar lograr pelas belas promessas e aderiram ao nazismo com conhecimento de causa, mesmo depois das leis de Nuremberg e das primeiras manifestações da política belicista de Hitler”. Não foi acaso.
“Os invisíveis” é um desses filmes que deixam um gosto amargo na boca. Por outro lado, revela a maravilhosa coragem daqueles que ousam se expor em defesa da dignidade humana enfrentando ondas e correntes. Como não se emocionar com a história da moça que se esconde no cinema até ser “adotada” pela senhora da bilheteria? Como não se entusiasmar com o genial falsificador de documentos que salvam vidas, mas se descuida e deixa queimar a papelada que lhe garante a sobrevivência? Como não se preocupar com a falsa viúva trabalhando na casa de um oficial nazista? Como não se encantar com as paixões do adolescente obrigado a viver na clandestinidade?
O sistema pretendia ser absoluto, tentacular, visível em todas as instâncias. A astúcia e a solidariedade souberam resistir a ele em alguns momentos e casos. Como mostrou Hannah Arendt, porém, o terrível é “banalidade do mal”, que não se apresenta como monstro. Lindo triste filme.JM.

quarta-feira, outubro 31, 2018

Trump e os novos bárbaros



      Sete mil pessoas avançam pelo México em direção aos Estados Unidos. São desesperados da Guatemala, de El Salvador e de Honduras em busca da sobrevivência. Nada parece capaz de tirar-lhes o ânimo na caminhada. São movidos pela miséria. Como nada mais têm a perder, arriscam o que lhes resta: a pele. Os teóricos da globalização alardearam durante anos o fim do Estado-nação e a queda das fronteiras. Nem sempre disseram que isso deveria valer para as mercadorias. Não necessariamente para os seres humanos.
Guy Debord, autor do livro clássico “A sociedade do espetáculo”, advertira numa bela e triste fórmula: “O espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. A frase mais óbvia seria: “O espetáculo não canta os homens e suas paixões, mas as mercadorias e suas armas”. Certo é que, como no passado europeu, “hordas” avançam agora em direção ao império estadunidense. São os novos hunos, godos, burgúndios, alanos, suevos, vândalos, anglos, saxões, francos? Os bárbaros mudaram a
Europa e o mundo. O termo designava simplesmente quem era estrangeiro.
Estranho, estrangeiro, diferente, inferior. Essa cadeia falsamente lógica permeou imaginários ao longo dos séculos. Donald Trump pretende barrar os “novos bárbaros” com poderoso aparato militar. No twitter, o presidente dos Estados Unidos recorreu à sua tradicional retórica bélica: “É uma invasão do nosso país e nosso Exército estará esperando vocês!” Cinco mil soldados foram deslocados para a fronteira mexicana. Trump completou: “Muitos membros de gangues e algumas pessoas muito más estão na caravana rumo a nossa fronteira sul. Por favor, voltem, vocês não serão admitidos nos EUA a não ser que seja pelo processo legal”. Faz sentido.
O problema é que desesperado não podem esperar o processo legal que dificilmente lhes daria ganho de causa. O que fazer contra uma “invasão” de miseráveis capaz de marchar sem violência?  É verdade que, quando atacados com bombas de gás lacrimogênio, os retirantes responderam com paus e pedras. Essa cena parece ser apenas o prenúncio de outras. Na Europa, africanos jogam-se ao mar, onde muitos perecem, em barcos precários na tentativa de aceder à costa italiana. A fome é um combustível poderoso.
De quem fogem esses migrantes que com certeza adorariam não sair de casa? De ditadores, de maus gestores, de corruptos, de políticos venais, de exploradores de todos os tipos e da falta de perspectiva. Como ficar sem futuro? A reação das potências é fechar suas portas. Que se virem. Esbarram em duas questões: o senso de humanidade – os Direitos Humanos – que cobra uma atitude; e impossibilidade cada vez mais concreta de frear os avanços desses “novos bárbaros” dispostos a morrer para quem sabe conseguir viver.
O que fará Donald Trump se novas “hordas” surgirem nos “portões” do império e não pararem diante do poderio militar à espera? E dizer que um dia um certo Francis Fukuyama anunciou o fim da história. Ela nunca acaba. Às vezes, move-se para trás. Outras, dá saltos imprevisíveis para a frente. JM

terça-feira, outubro 30, 2018

Papo de viagem


 Seres humanos adoram se distinguir dos seus iguais. A fama e o dinheiro são formas de distinção. Precisamos de sistemas de hierarquização social. Usar produtos de marca é uma modalidade de classificação. Não suportamos parecer frangos num aviário. O consumismo é a principal forma de separação entre nós. A escolha, como dizem especialistas, se dá sempre na produção. Temos o direito de escolher entre um Iphone e um Smartphone. O importante é que o mercado nos ofereça pequenas diferenças para comprar.
A viagem tornou-se um excelente diferencial. O mundo da classe média divide-se entre os que viajam muito, os que viajam pouco e os que nunca viajam. Estes, coitados, são vistos como párias. A viagem como sistema de hierarquia social produz conversas extraordinárias e quase literárias.
– Milão é maravilhosa.
– Sem dúvida. Bela cidade.
– Tem um clima muito especial.
– É verdade. Muito legal.
– Você já foi?
Essa conversa se repete ao infinito. Muda apenas o nome do lugar. Em alguns casos, os nomes ficam cada vez mais desconhecidos ou exóticos:
– Kuala Lampur tem algo especial.
– É o que parece.
– É uma personalidade. Como certos vinhos.
– Impressionante.
– Você já foi?
É como um jogo. Os lances vão ficando mais altos, arriscados, ousados, tirados do fundo da cartola. É briga de cachorro com pedigree.
– Guimarães é bacana.
– Prefiro Piranhas.
– Guimarães é a própria história de Portugal.
– Piranhas é o sertão.
– Você já foi?
Outro dia, escutei uma conversa posterior a uma desses duelos de viajantes. Um casal, num restaurante aclamado, comemorava uma vitória:
– Você meteu seis “você já foi” neles!
– Um atrás de outro, amor.
– Viste a cara dela cada vez que você emplacava um?
– Claro que vi. Não tem preço!
O perigo é a fake news. Pode haver até dupla falsificação:
– Palá é uma gracinha.
– Eu sei.
– Tem uma atmosfera, uma aura, um halo.
– Eu sei. É como Lapá.
– Você já foi lá a Palá?
– Claro. Óbvio. E você já foi a Lapá?
– Várias vezes JM

segunda-feira, outubro 29, 2018

A responsabilidade...


E agora?

      O Brasil teve treze possibilidades no primeiro turno. Excetuadas as candidaturas folclóricas do Cabo Daciolo e de José Maria Eymael e a clausura ideológica de Vera Lúcia, nove eram menos problemáticas e assustadoras do que a aposta em Jair Bolsonaro. Se a questão era o combate à corrupção, por que não se votou em Álvaro Dias, o mais entusiasmado defensor da Lava Jato? Se o interesse era um choque liberal em economia e conservador em comportamento, com ênfase em alguém fora ou contra o sistema, por que não se escolheu João Amôedo? Se o foco era em reformas liberais profundas e ao gosto do mercado, por que não se foi de Henrique Meirelles? Se o importante era honestidade e ausência de radicalismos, por que Marina Silva não decolou?
Se o antipetismo era o fundamental, por que não Ciro Gomes?
Geraldo Alckmin não teria sido uma opção menos nebulosa e dentro dos limites formais da democracia? Cada um com seus limites e defeitos. Cada um contribuiu um pouco para o resultado alcançado. Os tucanos trabalharam fortemente durante anos para estimular o antipetismo. O PT colaborou com os seus erros jamais realmente admitidos e com sua incapacidade de perceber o beco em que estava metido. Não quis uma frente de esquerda. Preferiu ser hegemonista até na derrota. Faltou a Ciro Gomes, apesar de ter razões para ressentimentos, grandeza na reta final. O pedetista saiu enorme do primeiro turno e minúsculo do segundo. Todos aqueles que consideram Jair Bolsonaro ameaça à democracia deveriam ter tomado providências para vencê-lo mesmo que isso representasse perder fatias do poder. Ou era só retórica de campanha? Ou não se importavam com o futuro?
Muito se falou em fim das ideologias e em anseio de equilíbrio. Foi a eleição dos radicalismos, da polarização ideológica, do aparelhamento de setores da justiça eleitoral, com quebra da sagrada autonomia das universidades para retirar faixas que nem nomeavam candidatos, das fake news e do ódio. Talvez nunca se tenha eleito antes no Brasil um candidato com tamanho histórico de declarações preconceituosas e antidemocráticas. Se foi a eleição do contra, contra o petismo, foi também o pleito do a favor, do a favor de ideias extremas e posturas sem nuances. O bolsonarismo, como qualquer um sabe, não se pauta pelo comedimento nas provocações e ideais.
A mídia ajudou com sua sanha simplificadora pretensamente ética A justiça deu o seu quinhão com seletividade e diferentes ritmos processuais. A imprensa internacional foi ignorada nas suas advertências ou desqualificada como esquerdista. Voltamos à Guerra Fria: capitalismo versus comunismo. O primeiro ciclo trabalhista, de Getúlio Vargas, terminou com a eleição de um militar. O segundo, fracassado o intervalo de Jânio Quadros, com um golpe midiático-civil-militar. Este terceiro, o ciclo trabalhista do lulismo, fecha-se com a eleição de dois militares aposentados. O quem vem por aí? O Brasil deu um salto no escuro como se fosse a uma festa.
A economia não foi o ponto central desta eleição. Comportamento e ideologia predominaram. Antipetismo e anticorrupção encobriram algo mais profundo: uma rejeição ao imaginário forjado a partir de maio de 1968 no Ocidente. Estamos mais divididos do que nunca. Nunca estivemos unidos. Não será Bolsonaro o nosso elo. JM

sábado, outubro 27, 2018

Felicidade da nação


 Precoce em quase tudo, o inglês John Stuart Mill (1806-1873) não passou a vida em férias.
Filho do filósofo escocês James Mill e afilhado do pensador do utilitarismo, o ainda hoje citado Jeremy Bentham, John foi educado para ser gênio. Na infância, leu os gregos antigos e os latinos. Brincava recitando Esopo e diálogos de Platão. O pai dele acreditava que a mente era uma página em branco a ser preenchida. Tratou de inscrever na cabeça do filho as ideias dos melhores pensadores da história. John tudo absorveu e suportou. Até que se rebelou, caiu em depressão e tomou rumo.
Rumo próprio. Para ganhar a vida, virou burocrata na Companhia Inglesa das índias Orientais. Era pouco para a sua enorme inteligência e cultura. Então, por força certamente de bons ventos, apaixonou-se por Harriet Taylor. Uma dessas paixões para a vida toda e em qualquer situação. Ela era linda, determinada, vanguardista, com um belo rosto oval britânico e culta. Havia, para a época, um inconveniente: era casada e tinha dois filhos. John foi paciente. Esperou 20 anos pela morte do marido da musa. Aí se casaram. Só desfrutaram de parcos sete anos de convivência. Ela morreu.
Intelectual até a medula, John Stuart Mill travou contato com o pai do positivismo, o francês Auguste Comte, que exerceria grande influência sobre os republicanos brasileiros como o gaúcho Júlio de Castilhos. Máquina de pensar, John pôs a sua inteligência privilegiada a serviço da felicidade da nação. De certo modo, não seria impertinente dizer que a grande questão da sua vida foi: como podemos ter uma nação feliz? Na busca dessa resposta, escreveu obras luminosas como “Princípios de economia política”, “Utilitarismo” e “Sobre a liberdade”. Defensor dos direitos das mulheres num tempo de machismo triunfante, publicou, com Harriet, “A sujeição das mulheres”. Eleito para o parlamento em 1865, defendeu o direito de voto às mulheres e direitos iguais aos dos homens para elas na esfera pública.
Uma sociedade feliz exige indivíduos felizes. Os princípios políticos da felicidade são a liberdade e a dignidade, que também pode ser chamada de justiça social. Se a igualdade total não existe, a desigualdade absoluta produz infelicidade. John Stuart Mill entrou para a história como um dos maiores pensadores do liberalismo político. A liberdade primeira para ele é a liberdade de expressão, que implica disposição para o confronto de ideias. Ponto e contraponto. Exposição permanente ao contraditório. Ele acreditava que mesmo os mais teimosos acabam modificados pela força dos argumentos opostos se estes forem irrefutáveis. Debater é um bem maior.
Princípio do dano – Racionalista, John Stuart Mill tinha convicções na força dos argumentos: “A principal vantagem da verdade consiste em que quando uma opinião é verdadeira, pode-se sufocá-la uma vez, duas vezes ou mais, mas ela sempre ressurge no corpo da história e acaba por se impor a uma época”. Durante muito tempo ele refletiu sobre um tópico: o que a sociedade tem direito de restringir na ação individual por meio do Estado? Ele chegou à resposta que se tornaria conhecida como “princípio do dano”. Só se pode impedir uma pessoa de fazer aquilo que causa dano a terceiros.
Um verdadeiro liberal não pode ser liberal em economia e restritivo em comportamento de adultos livres. Mill sustentava que o Estado, como instrumento da sociedade, não pode impedir alguém de fazer mal a si mesmo. Pode e deve tentar ajudá-lo. Não pode e não deve puni-lo. John Stuart Mill combatia a “tirania das maiorias” por crer que cada indivíduo, como uma planta, precisa de espaço para viver a sua especificidade. Como ser feliz num mundo que tolhe a liberdade do indivíduo em nome de preceitos coletivos subjetivos e variáveis? Ser feliz é antes de tudo conquistar o direito de ser o que se é ou quer ser se isso não causa dano objetivos a outros.
A felicidade, segundo Mill, não é feita de arrebatamentos constantes, que são raros como a paixão, mas de “muitos e variados prazeres” em “meio a uma existência constituída de poucas e transitórias dores”. O que mais impede a felicidade dos indivíduos e das suas sociedades? Simples: “A educação falida e os arranjos sociais falidos são os únicos obstáculos reais que impedem que isso esteja ao alcance de quase todos”. Educação falida é aquela que reproduz preconceitos e limita a diversidade que não produz danos aos demais. Arranjos sociais falidos são as instituições engessadas que sufocam o desabrochar dos desejos legítimos de cada um.
John Stuart Mill pregou a tolerância e a liberdade como pilares da melhor convivência possível entre diferentes. Uma nação feliz é aquela que facilita a maior realização possível dos desejos individuais e reduz ao máximo o sofrimento imposto pela restrição às liberdades de cada um. Na juventude, fui seguidor do anarquista alemão Max Stirner. Na idade da razão, meu livro de cabeceira é “Sobre a liberdade”, de John Stuart Mill. Eis um livro a ser lido em tempos de decisão sobre os destinos da nação.JM

sexta-feira, outubro 26, 2018

Eleições 2018


 Entramos na reta final. Chegou a hora de escolher em definitivo pelos próximos quatro anos. No domingo, cada eleitor sentirá a famosa angústia do goleiro na hora do gol. Ou do cobrador do pênalti na solidão povoada do estádio. Em que canto bater? Se acertar, fez o dever de casa. Se errar, pagará a conta. As pesquisas dão o jogo por jogado. Analistas tentam de tudo para explicar o cenário vivido. O que levou a população brasileira, que elegeu o PT quatro vezes seguidas, a pender, no primeiro turno e nas sondagens, para o outro lado?
As respostas dificilmente deixam de lado estes aspectos: antipetismo; corrupção; insegurança e violência; ideologia. Razões não faltam no imaginário para que muitos rejeitem o PT. A sigla passou a ser associada ao estigma da corrupção endêmica. A sua defesa quase sempre consiste em alegar que os outros não são melhores. Jair Bolsonaro, porém, garante que seus adversários o atacam em diversos campos, especialmente o das polêmicas sobre comportamento e da sua inércia com deputado de sete mandatos, por não poder chamá-lo de corrupto. A violência nas ruas é um fato. O medo domina. A questão é saber qual a solução para isso. Armas?
O fator ideológico não pode ser menosprezado. Muita gente perdeu a timidez e encontrou-se no discurso frontal de Bolsonaro. Escancarou-se um orgulho de ser de direita e de rejeitar o chamado politicamente correto, tudo aquilo que contesta um estado de coisas secular. Um Brasil que não se exibia em praça pública passou a se manifestar e a “causar” na internet. Sem dúvida, é a eleição das redes sociais, das fake news, dos grandes embates ideológicos em qualquer lugar, dos arroubos retóricos perigosos, das pressões sobre os oponentes e das ameaças. Há muita dúvida no ar. Fernando Haddad sustenta, porém, que a virada acontecerá. Diz que sente isso no ar. As últimas pesquisas também trouxeram algum conforto. A diferença entre os candidatos caiu um pouco.
No Rio Grande do Sul, o segundo turno será decidido entre dois candidatos do mesmo campo ideológico, José Ivo Sartori e Eduardo Leite. Mesmo assim, o tom subiu. Não há disputa pelo poder sem tensão e golpes baixos. Também aqui, segundo as pesquisas, o jogo está jogado. Os dois candidatos tiveram de declarar apoio a Bolsonaro, o grande eleitor, para não perder terreno. Leite oscilou entre o apoio imediato, o recuo e a adesão com ressalvas. Sartori foi com tudo e sua equipe apostou numa fusão marqueteira inimaginável: o “Sartonaro”.
O mundo observa o Brasil um tanto perplexo. A retórica agressiva e conservadora de Bolsonaro assusta parte da imprensa internacional. Não faltam também críticas ao fato de que o PT nunca fez um pedido de desculpas ao país por alguns dos seus malfeitos de um passado ainda muito recente e fumegante. Poucas vezes se viu e sentiu tanta tensão numa disputa eleitoral no Brasil. Amizades se desfizeram, familiares se dividiram, almoços de domingo viraram campo de batalha, mentiras foram defendidas como verdades e verdades foram desmentidas todo dia.
Faltou o grande debate de televisão entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Deveria estar na regra do jogo? A estratégia eleitoral impõe-se. Esquerda e direita já se esquivaram de debates. Uma pena. Os dados foram lançados. Ou ainda serão? A solidão da cabine dita indevassável pesará como um túmulo para muitos. Chegou a hora.JM

quarta-feira, outubro 24, 2018

Prevendo o futuro?


 Eu acredito no poder dos livros mesmo quando sinto que a civilização da escrita está em declínio. Procuro tempo para procurar em obras diversas respostas capazes de me arrancar da perplexidade. Pego na estante “O advento da sociedade pós-industrial”, de Daniel Bell. É um tijolo de 540 páginas que li, certa vez, na praia. Bell destacou-se como professor na Universidade de Harvard. Um liberal. No sentido americano, um conservador. Ótimo livro para época de eleições. Abre com uma provocação: “Este é um ensaio de previsão social. Pode alguém, entretanto, predizer o futuro?” A resposta do famoso intelectual é paradoxalmente categórica: “Não”. O futuro não existe.
Como, então, seu livro é um “ensaio de previsão social”? Acontece que ele, como bom intelectual, introduziu uma distinção entre predição e previsão. A predição seria impossível. A previsão, não. Intelectuais amam palavras e parecem crer que elas modificam a realidade. Predizer seria, por exemplo, antecipar quem vai ganhar uma eleição. Prever, seguir regularidades e constâncias. Bell fez previsão – ou predição? – sobre o fim das ideologias. Seja qual for a palavra, todos queremos saber o que vai acontecer. Como será o Brasil amanhã?
O que as regularidades indicam? O que os elementos disponíveis permitem antever? Daniel Bell escreveu cristalinamente como era do seu estilo: “A previsão só é possível quando se pode supor um alto grau de racionalidade por parte dos homens que influenciam os acontecimentos – o reconhecimento dos custos e coerções, a aceitação geral ou a definição das regras do jogo, o acordo quanto as seguir as regras, o desejo de coerência”. Podemos fazer previsões? Cada um responderá conforme a sua ideologia. Opa! Segundo Bell, não há mais ideologias. Digamos, conforme suas visões de mundo. Palavras? Ou novas realidades?
Ele tratou de antecipar as perguntas dos leitores: “Que valor têm as previsões? Embora não possam predizer os resultados, elas são capazes de especificar as coerções, ou limites, dentro dos quais as decisões políticas se tornaram efetivas. Considerando-se o desejo que têm os homens de controlar sua história, isto representa claramente uma vantagem no sentido de uma autoconsciência social”. Talvez o meu leitor se impaciente: “Onde quer chegar com isso?” A minha resposta também é cristalina: ao futuro. Não existe? O inexistente preocupa.
Em outro livro, igualmente famoso e de grande vendagem, “O fim da ideologia”, Daniel Bell afirmou até para surpresa dos mais afoitos: “A questão do tipo de ética que se deve aceitar é crucial, porque o caráter distintivo da política moderna é o envolvimento de todos os estratos da sociedade nos movimentos de transformação social, em vez da aceitação fatalista dos acontecimentos, como nas sociedades feudais ou camponesas”. Estamos servidos? A sociedade inteira está participando do jogo. Da constituição das regras do jogo também? Parece que sim. É um sistema representativo. E o futuro? Bate à porta. O que trará? O fim das ideologias ou o retorno delas pela janela?JM

terça-feira, outubro 23, 2018

Tem Sartre em Ipanema!


O Rio de Janeiro continua lindo. Passei o final de semana lá. É um lugar, como se sabe, informal. No ônibus de Juiz de Fora para o Rio tudo já se mostra acelerado. Entra uma jovem com um rechonchudo bebê.
– Você anda com ele assim por aí? – pergunta uma senhora.
– É que me separei hoje – diz a moça.
– Está fugindo de casa? – dispara a senhora.
– Sou chilena – informa a jovem mãe. – Ele assinou uma autorização para eu levar o menino. Não quer filho nem nada. Só quer cachaça.
Conta a vida na viagem. Todo mundo se interessa. Cada um faz uma pergunta. Corta para o táxi até hotel em Ipanema. Motorista discursa:
– Botaram os intelectuais no poder. Deu M. Botaram os operários no poder. Deu M. agora vai o maluco mesmo. Talvez dê certo. O Trump, que todo mundo esculhambava e que faz suas gafes, está indo muito bem. O homem sem trabalho e sem dinheiro não é ninguém. O resto até passa.
Liga o rádio depois de esgotar o seu comunicado de boas-vindas. Um economista em tom jovial ensina “para a galera” as vantagens do liberalismo econômico sobre a perspectiva estatizante da esquerda. Vai de François Quesnay a Paulo Guedes passando por Adam Smith. Hotel no Posto 9. De cara para o mar. A atendente é gentil. Não poupa erres e esses. É de Honório Gurrrrgel. Informa, depois de alguns minutos de espera e preenchimento anacrônico de papel, que podemos sorrir:
– O seu apartamento está sendo finalizado.
– Beleza. Em qual andar?
– Ainda não sabemos. Vai ser o que liberar.
Rimos. Pedimos para deixar a bagagem. Vamos almoçar enquanto o quarto ainda não liberado é finalizado. O rapaz tem um problema. Perdeu as etiquetas. Procura o colega, que saiu. Na falta de outra saída, improvisa com uma tesoura uma etiqueta sob medida para nós.
A vida flui. Salvo o trânsito. A polícia tranca três pistas no domingo à tarde para uma batida próximo ao aeroporto Santos Dumont e faz gente perder voos. Improvisa-se uma solução, em casos extremos, para o dia seguinte. A política fascina os cariocas. Em disputa pelo governo do Rio de Janeiro um ex-prefeito que, segundo os críticos, mora nos Estados Unidos, onde pagaria dez mil reais por filho na escola, e um ex-juiz que aparece em vídeo ensinando atalhos para abocanhar todos os auxílios possíveis do judiciário. Fake news? Como sempre, nada ilegal. Imoral? Isso é obviamente subjetivo. Vasco e Botafogo namoram o rodapé da tabela. O Mengão está lá em cima. Pouco sol. Carioca detesta tempo nublado e sinal fechado. Eu também. E tu?
Aproveitei o tempo. Reli “A idade da razão”, de Sartre, nas areias de Ipanema. A questão do livro é provocativa: somos livres para escolher? É um romance atual. Começa com um problema em pauta: deve-se ou não fazer aborto quando não se esperava nem queria filho? Na Zona Sul carioca, barulhenta manifestação em favor de Jair Bolsonaro. No avião de volta, casal de camiseta pró-capitão. E o pessoal de Fernando Haddad? Aos cochichos. Vale como pesquisa Ibope? O Rio de Janeiro continua lindo. Nunca vi tanta polícia na praia. No intervalo, fiquei sabendo que se pode fechar o STF com um cabo e um soldado. É simples.JM

segunda-feira, outubro 22, 2018

A decisão!


No seu pequeno livro “Informar não é comunicar”, Dominique Wolton faz uma distinção clara entre os dois termos que aparecem no título da obra. Informar é relativamente simples. Comunicar é que importa e complica.
Por quê?
Por ser uma relação.
Uma constante negociação. Comunicar passa necessariamente pelo reconhecimento do outro, dos outros, dos diferentes, dos irredutíveis, dos singulares, dos que não aceitam ser reduzidos à visão de mundo do interlocutor.
O sociólogo francês resumiu assim a questão: “Há duas concepções da comunicação que se opõem. A primeira, amplamente dominante, insiste na performance das tecnologias como progresso da comunicação numa espécie de continuidade que favorece o setor industrial, aquele que mais cresce no mundo. A segunda concepção, minoritária, na qual este livro se inscreve, parte da dimensão antropológica da comunicação e privilegia os processos políticos necessários para evitar que o horizonte da incomunicação entre os indivíduos e as culturas não se torne uma fonte de conflitos. Essas duas concepções não compartilham a mesma visão da relação entre o homem e a tecnologia”.
O que isso diz?
Diz que a tecnologia informa. O homem é que comunica. Ou se comunica. A informação pode ser técnica. A comunicação é política. Visão técnica é o nome que os liberais costumam dar à ideologia econômica que professam. O Brasil vive um momento singular. Há muita informação disponível e pouca informação? Ou há muito signo circulando com pouca informação e quase nenhuma comunicação? Se a comunicação implica a relação, estamos ferrados. Não existe zona de intersecção entre as bolhas que coexistem no espaço virtual ou na realidade física e áspera de cada cidade, bairro, empresa, escola, casa, bares, ruas.
Nunca tivemos tantos meios de comunicação e tão pouca relação, interação e negociação. Parafraseando Heidegger, a essência da comunicação nunca é comunicacional, mas sempre política. Nada mais simplório do que enxergar ideologia apenas na posição dos outros. Nada mais perigoso do que propor unidade sem diversidade. O que fazer com esse outro que me desafia, provoca, choca, critica, ataca e não cede?
Confundir informação com comunicação equivale a misturar meio e fim. Wolton questiona: “Em que consiste a ideologia tecnicista da comunicação? Em transferir para as ferramentas o trabalho de resolver problemas sociais para os quais elas não estão habilitadas. É crer que quanto mais tecnologia houver – amanhã teremos, por exemplo, 6,5 bilhões de internautas –, mais os indivíduos se compreenderão. Significa subordinar o progresso da comunicação humana e social ao progresso das tecnologias”. Temos muita tecnologia e cada vez menos compreensão. Tecnologia abundante não é sinônimo de mais democracia.
Quem decide o que somos e seremos? Em princípio, nós. A ideologia tecnicista sugere que máquinas e fluxos informacionais podem fazer isso por nós. Não funciona. A conta sempre chega. Conversa pesada? Cada época produz o peso que merece ou do qual padece.JM

terça-feira, outubro 16, 2018

Extinção dos dinossauros!


Passado o impacto, reflitamos sobre o que aconteceu em 7 de outubro. Um meteorito eleitoral devastou dinossauros políticos. O que será do Brasil sem Romero Jucá, Eunício Oliveira, Edison Lobão, Roberto Requião, Jorge Viana, Cristovam Buarque, Magno Malta, Marconi Perillo, Cássio Cunha Lima, José Agripino Maia, José Carlos Aleluia, Pauderney Avelino, Beto Mansur e outros elefantes longevos e barulhentos? O que será da nação sem um representante tradicional da família Sarney no parlamento ou no governo? Como viveremos sem Zequinha? Ao longo de diferentes governos Romero Jucá prestou serviços nefastos ao país. A sua frase mais famosa sempre será aquela sobre a necessidade de estancar a sangria da Lava Jato. Que faremos sem ele?
Os paquidermes ficaram pelo caminho abatidos impiedosamente pelos eleitores. Alguns, como Eduardo Suplicy, tiveram a ilusão de que voltariam. Outros, feito Lindbergh Farias, não souberam perceber, como Aécio Neves e Gleisi Hoffmann, a hora de ficar menor para sobreviver. O Rio Grande do Sul perdeu na Câmara dos Deputados Darcísio Perondi, que disputava com Carlos Marun o título de o mais fiel servidor de Michel Temer, o mais impopular presidente da história do Brasil. A aposta não foi boa. Temer virou o pior cabo eleitoral do mundo. Choram os dinossauros enquanto esvaziam as gavetas. O tempo da retirada chegou. Alguns, porém, tentarão voltar. Jucá certamente concorrerá a prefeito em 2020. Salvo se puder aparecer como ministro antes disso.
Alguns terão de procurar emprego. Sabem ainda trabalhar? A maioria viverá de suas gordas aposentadorias especiais e de suas poupanças. Dinossauros sempre podem surpreender. Ibsen Pinheiro e Pedro Simon, dois caciques do MDB gaúcho, representantes históricos da oposição ao regime militar, deram aval ao apoio do partido a Jair Bolsonaro. A renovação das cadeiras em disputa no Senado foi de 85%. Não significa que ficará melhor. Dificilmente será pior. Renan Calheiros conseguiu salvar o couro e permanecerá como vestígio de uma época abalada por uma catástrofe natural. Um dia a casa terá de cair. As casas caem. Às vezes, tarde demais.
Durante décadas os dinossauros viveram tranquilamente em Brasília à sombra das mansões públicas e do auxílio-moradia. Faziam semanalmente a migração entre os seus Estados e a capital federal. Não temiam tempestades nem fitavam o céu. Dominavam imensos currais eleitorais que lhes garantiam proteção contras as intempéries. Não deram a menor bola para o surgimento das redes sociais, que ainda não sabem usar. Alguns, mais evoluídos, já mandam e-mails sozinhos. Não foi suficiente. Ainda se ouve o grito de agonia desses gigantes abatidos. Não sabem o que dizer. Jucá culpa a mídia e a Lava Jato. Pena que Requião, o dinossauro na contramão do entreguismo e das conspirações, caiu junto com tantos quadrúpedes que não deixarão rastros. Só pistas.
Dobram os sinos. Os dinossauros voltam para casa. Alguns, cansados, escreverão as suas memórias tomando o cuidado de omitir o principal. Outros, inconformados, gastarão horas ao telefone costurando estratégias para um retorno incerto. A maioria não deixará saudades. Em breve, nos aeroportos, ouvirão comentários devastadores:
– Esse aí não era senador?
– Acho que não. Não me lembro. JM