sábado, novembro 03, 2018

Face a face


Moro, o imparcial com lado
A Mosca Azul
Machado de Assis
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"
Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranquilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
Faz tempo que a mosca azul picou Sérgio Moro. Ele sempre se apresentou como um juiz imparcial. Por simples circunstância, nunca condenou tucanos. Por outra circunstância dessas da vida o seu foco foi o PT. Por necessidade, teve de publicar aquele grampo ilegal que levou ao impeachment de Dilma Rousseff. Por outra reles circunstância, condenou Lula o mais rápido possível com escassez ou falta de provas. Foi só coincidência que o TRF-4 tenha confirmado sua sentença em tempo mais rápido ainda. Moro sempre foi imparcial e neutro. Por circunstância, teve de cancelar uma ordem de instância superior para impedir a soltura de Lula. Azar da hierarquia e da falta de atribuição legal. Nunca lhe passou pela cabeça influenciar eleitores. Não passou de coincidência a sua liberação da delação de Antonio Palocci bem no meio da campanha eleitoral. É claro que ele não pretendia prejudicar as chances do petista Fernando Haddad.
Sérgio Moro nunca teve lado. Ele sempre foi tão imparcial e apartidário quanto o MBL, Kim Kataguiri, Alexandre Frota e Janaína Paschoal. Não passa, portanto, de coincidência que Jair Bolsonaro, presidente eleito pela extrema-direita, tenha querido convidá-lo para seu ministério de técnicos imparciais. Sem as decisões circunstanciais e neutras de Moro, Bolsonaro talvez não tivesse chegado à presidência da República. A imprensa internacional não consegue compreender o Brasil. Algumas manchetes de hoje: Financial Times: "Bolsonaro nomeia juiz que ajudou a prender Lula". The Times: "Bolsonaro promete emprego sênior para o juiz que prendeu o seu rival”. Malditos comunistas britânicos. Arre!
O jornal francês de direita, uma espécie de Estadão sem o golpe de 1964, foi descritivo: “O juiz que derrubou Lula será ministro da Justiça de Bolsonaro”. Nada mais justo? A justiça brasileira está de cara. No popular, Moro saiu do armário, passou recibo, revelou o tamanho da sua vaidade. Bolsonaro entregou: “Parecia um jovem universitário recebendo diploma”. Mais feliz do que pinto no lixo. Deslumbrado com o poder recebido. Se faltava um atestado, está dado. Moro, o imparcial, revelou seu lado.
Foi a mosca azul.JM

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