Perto da barbárie
Recebo muitos livros de autores e editoras. Ganho também presentes inesperados de amigos e estudantes. Deisy Cioccari me deu um livro surpreendente intitulado “Muito longe de casa, memórias de um menino-soldado”, de Ishmael Beah. É deslumbrante pela forma, aterrador pelo conteúdo e fascinante pelo imaginário. Um relato autobiográfico. A história de um adolescente devorado pela guerra civil em Serra Leoa, na África. O que sabemos no Brasil sobre esse episódio dramático? Quase nada. O quase é por cautela. Quem se importa entre nós com essa tragédia? Quase ninguém. Ou seja, ninguém.
O autor foi resgatado e vive em Nova York. Carrega na alma e no corpo a memória do inimaginável. Passou de criança perdida num dia de passeio, com a família devastada pela guerra, a soldado recrutado pelas forças de combate aos rebeldes. Aprendeu a matar como uma máquina e a consumir drogas em quantidades industriais para melhorar a performance no seu cotidiano de menino armado. O quadro que apresenta é de barbárie absoluta. Queimar aldeias e assassinar seus moradores era a técnica de base numa guerra sem quartel, sem regras e sem fim.
Era assim: “O fogo havia começado a acalmar, e eu estava correndo pela aldeia procurando alguma coisa, alguma coisa que eu não queria ver. Hesitante, tentava distinguir os rostos de corpos queimados, mas era impossível saber quem tinham sido um dia. Além disso, havia inúmeras deles”. Sem dúvida, uma passagem suave. Podia ser assim: “O sol mostrava partes de canos de armas e balas voando em nossa direção. Corpos tinham começado a se empilhar, uns por cima dos outros, perto de uma palmeira baixa em que sangue pingava da folhagem. Procurei Josiah. Uma granada havia lançado seu pequeno corpo do chão, fazendo aterrissar num toco de árvore. Ele sacudiu as pernas e seu grito foi se calando aos poucos. Havia sangue por toda parte”. Assim.
Incrivelmente há também muita poesia no relato. A descrição das paisagens é soberba. A investigação sobre os desvãos da perversidade humana é um catálogo de iniquidades. O ressurgimento da esperança, quando tudo era violência, brilha como um raio de sol impossível. Não se sabe ao longo do texto o que, de fato, queriam uns e outros em meio à guerra arrasadora e permanente. Não há espaço para discussão de objetivos e ideias. Tudo se resume a matar e a tentar permanecer vivo.
Eram crianças que amavam rap e banhos de rio. Eram meninos que sonhavam em amar e temiam a descoberta do amor. Eram pré-adolescentes que tinham pressa de viver. Eram filhos cujos pais ganhavam a vida duramente, mas experimentavam a felicidade de fazer parte de uma cultura ancestral e de um cotidiano de comunidade. Foram jovens que aprenderam a matar antes do aprendizado da vida. “Muito longe de casa” é um “romance” de iniciação, a iniciação ao terror, uma educação sentimental, pedagogia do horror. Nos agradecimentos, tudo se resume: “Nunca imaginei que estaria vivo até este dia, muito menos que escreveria um livro”. É a história impressionante de um sobrevivente.(JM).
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