Estamos em crise ou nunca vivemos de outra maneira? As narrativas históricas privilegiam as crises. No caso brasileiro, nossas melhores, ou piores, crises são marcadas por anos: 1817, 1822, 1831, 1835-1845, 1888, 1889, 1893-1895, 1896-1897, 1912, 1922, 1924, 1930, 1937, 1945, 1954, 1964, 1989, 2016, 2018. Pulei vários anos para não ocupar todo o espaço com números. Cada crise tem seu herói, seu culpado, seu pretexto, sua duração e sua incompletude. Nunca saímos das crises. Nem tentamos asfixiá-las. Ficamos satisfeitos em driblá-las. Como solução para a crise atual o governo propôs segurar o preço do diesel por dois meses. No meio desta semana, aumentou a gasolina.
Como pode se superar uma crise com uma medida destinada a resolver o problema gerador da ruptura por dois meses? Nem Einstein entenderia a relatividade do nosso conceito de tempo. A União Soviética desapareceu deixando Putin como vestígio de uma era glacial revoluta. A China tornou-se capitalismo de Estado ou socialismo de mercado conforme as variações da bolsa e as necessidades repressivas. Cuba é um museu a céu aberto ou uma favela no Caribe. A Coreia do Norte esconde-se do mundo para não revelar seu anacronismo nem o peso do grande líder. No Brasil, apesar disso e de outros sinais de mutação universal, digladiam-se “comunistas” e “anticomunistas”. Talvez porque o capitalismo da ponte para o futuro tenha gosto amargo de passado.
Em alguns lugares, ao menos, as crises produzem grandes obras literárias ou cinematográficas. Por aqui, nem isso. Nossa literatura não consegue passar do estado germinal ao da crise. O nosso cinema é tão incipiente que não chega ao estado de crise, pois isso exigiria alguma ousadia e o rompimento com certos hábitos. As nossas crises culturais mais recentes foram a Semana da Arte Moderna de 1922 e o Cinema Novo. O nosso escritor mais moderno ainda é Machado de Assis. Cada vez que estamos entediados derrubamos um presidente da República e estamos conversados. O resto é história. Já temos o que pesquisar.
A crise de 2018 segue o modelo clássico. É uma crise de deslocamento. Na Europa já se estuda a criação de um carro capaz de ler os pensamentos do motorista e de travar as suas ações deletérias. Trabalha-se também na construção de carros voadores sem pilotos. O nosso problema é um pouco mais complicado: estacionamos no tempo. Como não resolvemos a questão da desigualdade, enfrentada pelos franceses em 1789 e 1848, tentamos erguer pontes para veículos engarrafados. Quanto mais petróleo produzimos, ou somos capazes de produzir, mais caro custa o nosso combustível por não termos tecnologia para refinar o óleo pesado que extraímos das entranhas da terra. Enquanto outros países correm para dar saltos tecnológicos, apostando numa velha ideia de emancipação, nós persistimos na cômoda postura de entregar aos outros o que poderíamos fazer com nossas próprias mão e técnicas.
O nosso lema é orgulhosamente este: é mais barato ser dependente. Fechar as portas para o exterior seria patético. Escancará-las dá no que dá. Enfrentam-se duas ideologias: uma quer melhorar o Estado piorando a sociedade; a outra, faz o oposto. O mais curioso é descobrir que as duas possibilidades podem coabitar: Dilma e Temer na mesma chapa. Algo como, dispensadas as proporções, Rosa Luxemburgo e Ronald Reagan fazendo parceria eleitoral. O que pode um ovo desses gerar: Jair Bolsonaro ou Geraldo Alckmin? No país da polarização, ganha quem se fingir de moderado. Ou o ovo quebrou?
Como explicar aos europeus quadradinhos que Lula ganha em qualquer cenário das pesquisas ao mesmo tempo em que a maioria dos entrevistados acha justa a sua prisão? A crise segue a nossa lógica singular: Pedro Parente assumiu a Petrobrás. Tratava-se de um tecnocrata insosso e arrogante. Que armas ele já usava? Quantas batalhas já vencera? Quantos louros carregava no seu peito de guerreiro condecorado? Ninguém sabe. Ele adotou uma nova política de preços para o combustível. Essa escolha levou a uma greve que parou o país e o devolveu aos delírios de 1964. Demitiu-se o sujeito? Não. Garantiu-se que a sua política não seria alterada. Conclusão: estamos em crise por não cortarmos o mal pela raiz. Não sabemos extrair a raiz quadrada do mal. Não colou. Parente foi convidado a pedir para sair.
Um país que não tem uma obra-prima literária ou cinematográfica sobre sua eterna crise está fadado a viver em crise. Falta-lhe capacidade de síntese e de reflexão. Em “A Fogueira das vaidades”, Tom Wolfe escreveu que os procuradores do Bronx sonhavam com o “grande réu branco”. Com o que sonhavam os nossos? Com o que sonham escritores e cineastas brasileiros? Quando eu leio os mais jovens, concluo: com o próprio umbigo, que chamam de autoficção. Eles se veem na Academia Brasileira de Letras com José Sarney e Paulo Coelho. Quando leio os mais velhos, enterneço-me: eles sonham com o passado e com a morte. Ninguém sonha com a crise que nos devora e constitui. Eis o busílis.JM
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