quarta-feira, outubro 31, 2018

Trump e os novos bárbaros



      Sete mil pessoas avançam pelo México em direção aos Estados Unidos. São desesperados da Guatemala, de El Salvador e de Honduras em busca da sobrevivência. Nada parece capaz de tirar-lhes o ânimo na caminhada. São movidos pela miséria. Como nada mais têm a perder, arriscam o que lhes resta: a pele. Os teóricos da globalização alardearam durante anos o fim do Estado-nação e a queda das fronteiras. Nem sempre disseram que isso deveria valer para as mercadorias. Não necessariamente para os seres humanos.
Guy Debord, autor do livro clássico “A sociedade do espetáculo”, advertira numa bela e triste fórmula: “O espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. A frase mais óbvia seria: “O espetáculo não canta os homens e suas paixões, mas as mercadorias e suas armas”. Certo é que, como no passado europeu, “hordas” avançam agora em direção ao império estadunidense. São os novos hunos, godos, burgúndios, alanos, suevos, vândalos, anglos, saxões, francos? Os bárbaros mudaram a
Europa e o mundo. O termo designava simplesmente quem era estrangeiro.
Estranho, estrangeiro, diferente, inferior. Essa cadeia falsamente lógica permeou imaginários ao longo dos séculos. Donald Trump pretende barrar os “novos bárbaros” com poderoso aparato militar. No twitter, o presidente dos Estados Unidos recorreu à sua tradicional retórica bélica: “É uma invasão do nosso país e nosso Exército estará esperando vocês!” Cinco mil soldados foram deslocados para a fronteira mexicana. Trump completou: “Muitos membros de gangues e algumas pessoas muito más estão na caravana rumo a nossa fronteira sul. Por favor, voltem, vocês não serão admitidos nos EUA a não ser que seja pelo processo legal”. Faz sentido.
O problema é que desesperado não podem esperar o processo legal que dificilmente lhes daria ganho de causa. O que fazer contra uma “invasão” de miseráveis capaz de marchar sem violência?  É verdade que, quando atacados com bombas de gás lacrimogênio, os retirantes responderam com paus e pedras. Essa cena parece ser apenas o prenúncio de outras. Na Europa, africanos jogam-se ao mar, onde muitos perecem, em barcos precários na tentativa de aceder à costa italiana. A fome é um combustível poderoso.
De quem fogem esses migrantes que com certeza adorariam não sair de casa? De ditadores, de maus gestores, de corruptos, de políticos venais, de exploradores de todos os tipos e da falta de perspectiva. Como ficar sem futuro? A reação das potências é fechar suas portas. Que se virem. Esbarram em duas questões: o senso de humanidade – os Direitos Humanos – que cobra uma atitude; e impossibilidade cada vez mais concreta de frear os avanços desses “novos bárbaros” dispostos a morrer para quem sabe conseguir viver.
O que fará Donald Trump se novas “hordas” surgirem nos “portões” do império e não pararem diante do poderio militar à espera? E dizer que um dia um certo Francis Fukuyama anunciou o fim da história. Ela nunca acaba. Às vezes, move-se para trás. Outras, dá saltos imprevisíveis para a frente. JM

terça-feira, outubro 30, 2018

Papo de viagem


 Seres humanos adoram se distinguir dos seus iguais. A fama e o dinheiro são formas de distinção. Precisamos de sistemas de hierarquização social. Usar produtos de marca é uma modalidade de classificação. Não suportamos parecer frangos num aviário. O consumismo é a principal forma de separação entre nós. A escolha, como dizem especialistas, se dá sempre na produção. Temos o direito de escolher entre um Iphone e um Smartphone. O importante é que o mercado nos ofereça pequenas diferenças para comprar.
A viagem tornou-se um excelente diferencial. O mundo da classe média divide-se entre os que viajam muito, os que viajam pouco e os que nunca viajam. Estes, coitados, são vistos como párias. A viagem como sistema de hierarquia social produz conversas extraordinárias e quase literárias.
– Milão é maravilhosa.
– Sem dúvida. Bela cidade.
– Tem um clima muito especial.
– É verdade. Muito legal.
– Você já foi?
Essa conversa se repete ao infinito. Muda apenas o nome do lugar. Em alguns casos, os nomes ficam cada vez mais desconhecidos ou exóticos:
– Kuala Lampur tem algo especial.
– É o que parece.
– É uma personalidade. Como certos vinhos.
– Impressionante.
– Você já foi?
É como um jogo. Os lances vão ficando mais altos, arriscados, ousados, tirados do fundo da cartola. É briga de cachorro com pedigree.
– Guimarães é bacana.
– Prefiro Piranhas.
– Guimarães é a própria história de Portugal.
– Piranhas é o sertão.
– Você já foi?
Outro dia, escutei uma conversa posterior a uma desses duelos de viajantes. Um casal, num restaurante aclamado, comemorava uma vitória:
– Você meteu seis “você já foi” neles!
– Um atrás de outro, amor.
– Viste a cara dela cada vez que você emplacava um?
– Claro que vi. Não tem preço!
O perigo é a fake news. Pode haver até dupla falsificação:
– Palá é uma gracinha.
– Eu sei.
– Tem uma atmosfera, uma aura, um halo.
– Eu sei. É como Lapá.
– Você já foi lá a Palá?
– Claro. Óbvio. E você já foi a Lapá?
– Várias vezes JM

segunda-feira, outubro 29, 2018

A responsabilidade...


E agora?

      O Brasil teve treze possibilidades no primeiro turno. Excetuadas as candidaturas folclóricas do Cabo Daciolo e de José Maria Eymael e a clausura ideológica de Vera Lúcia, nove eram menos problemáticas e assustadoras do que a aposta em Jair Bolsonaro. Se a questão era o combate à corrupção, por que não se votou em Álvaro Dias, o mais entusiasmado defensor da Lava Jato? Se o interesse era um choque liberal em economia e conservador em comportamento, com ênfase em alguém fora ou contra o sistema, por que não se escolheu João Amôedo? Se o foco era em reformas liberais profundas e ao gosto do mercado, por que não se foi de Henrique Meirelles? Se o importante era honestidade e ausência de radicalismos, por que Marina Silva não decolou?
Se o antipetismo era o fundamental, por que não Ciro Gomes?
Geraldo Alckmin não teria sido uma opção menos nebulosa e dentro dos limites formais da democracia? Cada um com seus limites e defeitos. Cada um contribuiu um pouco para o resultado alcançado. Os tucanos trabalharam fortemente durante anos para estimular o antipetismo. O PT colaborou com os seus erros jamais realmente admitidos e com sua incapacidade de perceber o beco em que estava metido. Não quis uma frente de esquerda. Preferiu ser hegemonista até na derrota. Faltou a Ciro Gomes, apesar de ter razões para ressentimentos, grandeza na reta final. O pedetista saiu enorme do primeiro turno e minúsculo do segundo. Todos aqueles que consideram Jair Bolsonaro ameaça à democracia deveriam ter tomado providências para vencê-lo mesmo que isso representasse perder fatias do poder. Ou era só retórica de campanha? Ou não se importavam com o futuro?
Muito se falou em fim das ideologias e em anseio de equilíbrio. Foi a eleição dos radicalismos, da polarização ideológica, do aparelhamento de setores da justiça eleitoral, com quebra da sagrada autonomia das universidades para retirar faixas que nem nomeavam candidatos, das fake news e do ódio. Talvez nunca se tenha eleito antes no Brasil um candidato com tamanho histórico de declarações preconceituosas e antidemocráticas. Se foi a eleição do contra, contra o petismo, foi também o pleito do a favor, do a favor de ideias extremas e posturas sem nuances. O bolsonarismo, como qualquer um sabe, não se pauta pelo comedimento nas provocações e ideais.
A mídia ajudou com sua sanha simplificadora pretensamente ética A justiça deu o seu quinhão com seletividade e diferentes ritmos processuais. A imprensa internacional foi ignorada nas suas advertências ou desqualificada como esquerdista. Voltamos à Guerra Fria: capitalismo versus comunismo. O primeiro ciclo trabalhista, de Getúlio Vargas, terminou com a eleição de um militar. O segundo, fracassado o intervalo de Jânio Quadros, com um golpe midiático-civil-militar. Este terceiro, o ciclo trabalhista do lulismo, fecha-se com a eleição de dois militares aposentados. O quem vem por aí? O Brasil deu um salto no escuro como se fosse a uma festa.
A economia não foi o ponto central desta eleição. Comportamento e ideologia predominaram. Antipetismo e anticorrupção encobriram algo mais profundo: uma rejeição ao imaginário forjado a partir de maio de 1968 no Ocidente. Estamos mais divididos do que nunca. Nunca estivemos unidos. Não será Bolsonaro o nosso elo. JM

sábado, outubro 27, 2018

Felicidade da nação


 Precoce em quase tudo, o inglês John Stuart Mill (1806-1873) não passou a vida em férias.
Filho do filósofo escocês James Mill e afilhado do pensador do utilitarismo, o ainda hoje citado Jeremy Bentham, John foi educado para ser gênio. Na infância, leu os gregos antigos e os latinos. Brincava recitando Esopo e diálogos de Platão. O pai dele acreditava que a mente era uma página em branco a ser preenchida. Tratou de inscrever na cabeça do filho as ideias dos melhores pensadores da história. John tudo absorveu e suportou. Até que se rebelou, caiu em depressão e tomou rumo.
Rumo próprio. Para ganhar a vida, virou burocrata na Companhia Inglesa das índias Orientais. Era pouco para a sua enorme inteligência e cultura. Então, por força certamente de bons ventos, apaixonou-se por Harriet Taylor. Uma dessas paixões para a vida toda e em qualquer situação. Ela era linda, determinada, vanguardista, com um belo rosto oval britânico e culta. Havia, para a época, um inconveniente: era casada e tinha dois filhos. John foi paciente. Esperou 20 anos pela morte do marido da musa. Aí se casaram. Só desfrutaram de parcos sete anos de convivência. Ela morreu.
Intelectual até a medula, John Stuart Mill travou contato com o pai do positivismo, o francês Auguste Comte, que exerceria grande influência sobre os republicanos brasileiros como o gaúcho Júlio de Castilhos. Máquina de pensar, John pôs a sua inteligência privilegiada a serviço da felicidade da nação. De certo modo, não seria impertinente dizer que a grande questão da sua vida foi: como podemos ter uma nação feliz? Na busca dessa resposta, escreveu obras luminosas como “Princípios de economia política”, “Utilitarismo” e “Sobre a liberdade”. Defensor dos direitos das mulheres num tempo de machismo triunfante, publicou, com Harriet, “A sujeição das mulheres”. Eleito para o parlamento em 1865, defendeu o direito de voto às mulheres e direitos iguais aos dos homens para elas na esfera pública.
Uma sociedade feliz exige indivíduos felizes. Os princípios políticos da felicidade são a liberdade e a dignidade, que também pode ser chamada de justiça social. Se a igualdade total não existe, a desigualdade absoluta produz infelicidade. John Stuart Mill entrou para a história como um dos maiores pensadores do liberalismo político. A liberdade primeira para ele é a liberdade de expressão, que implica disposição para o confronto de ideias. Ponto e contraponto. Exposição permanente ao contraditório. Ele acreditava que mesmo os mais teimosos acabam modificados pela força dos argumentos opostos se estes forem irrefutáveis. Debater é um bem maior.
Princípio do dano – Racionalista, John Stuart Mill tinha convicções na força dos argumentos: “A principal vantagem da verdade consiste em que quando uma opinião é verdadeira, pode-se sufocá-la uma vez, duas vezes ou mais, mas ela sempre ressurge no corpo da história e acaba por se impor a uma época”. Durante muito tempo ele refletiu sobre um tópico: o que a sociedade tem direito de restringir na ação individual por meio do Estado? Ele chegou à resposta que se tornaria conhecida como “princípio do dano”. Só se pode impedir uma pessoa de fazer aquilo que causa dano a terceiros.
Um verdadeiro liberal não pode ser liberal em economia e restritivo em comportamento de adultos livres. Mill sustentava que o Estado, como instrumento da sociedade, não pode impedir alguém de fazer mal a si mesmo. Pode e deve tentar ajudá-lo. Não pode e não deve puni-lo. John Stuart Mill combatia a “tirania das maiorias” por crer que cada indivíduo, como uma planta, precisa de espaço para viver a sua especificidade. Como ser feliz num mundo que tolhe a liberdade do indivíduo em nome de preceitos coletivos subjetivos e variáveis? Ser feliz é antes de tudo conquistar o direito de ser o que se é ou quer ser se isso não causa dano objetivos a outros.
A felicidade, segundo Mill, não é feita de arrebatamentos constantes, que são raros como a paixão, mas de “muitos e variados prazeres” em “meio a uma existência constituída de poucas e transitórias dores”. O que mais impede a felicidade dos indivíduos e das suas sociedades? Simples: “A educação falida e os arranjos sociais falidos são os únicos obstáculos reais que impedem que isso esteja ao alcance de quase todos”. Educação falida é aquela que reproduz preconceitos e limita a diversidade que não produz danos aos demais. Arranjos sociais falidos são as instituições engessadas que sufocam o desabrochar dos desejos legítimos de cada um.
John Stuart Mill pregou a tolerância e a liberdade como pilares da melhor convivência possível entre diferentes. Uma nação feliz é aquela que facilita a maior realização possível dos desejos individuais e reduz ao máximo o sofrimento imposto pela restrição às liberdades de cada um. Na juventude, fui seguidor do anarquista alemão Max Stirner. Na idade da razão, meu livro de cabeceira é “Sobre a liberdade”, de John Stuart Mill. Eis um livro a ser lido em tempos de decisão sobre os destinos da nação.JM

sexta-feira, outubro 26, 2018

Eleições 2018


 Entramos na reta final. Chegou a hora de escolher em definitivo pelos próximos quatro anos. No domingo, cada eleitor sentirá a famosa angústia do goleiro na hora do gol. Ou do cobrador do pênalti na solidão povoada do estádio. Em que canto bater? Se acertar, fez o dever de casa. Se errar, pagará a conta. As pesquisas dão o jogo por jogado. Analistas tentam de tudo para explicar o cenário vivido. O que levou a população brasileira, que elegeu o PT quatro vezes seguidas, a pender, no primeiro turno e nas sondagens, para o outro lado?
As respostas dificilmente deixam de lado estes aspectos: antipetismo; corrupção; insegurança e violência; ideologia. Razões não faltam no imaginário para que muitos rejeitem o PT. A sigla passou a ser associada ao estigma da corrupção endêmica. A sua defesa quase sempre consiste em alegar que os outros não são melhores. Jair Bolsonaro, porém, garante que seus adversários o atacam em diversos campos, especialmente o das polêmicas sobre comportamento e da sua inércia com deputado de sete mandatos, por não poder chamá-lo de corrupto. A violência nas ruas é um fato. O medo domina. A questão é saber qual a solução para isso. Armas?
O fator ideológico não pode ser menosprezado. Muita gente perdeu a timidez e encontrou-se no discurso frontal de Bolsonaro. Escancarou-se um orgulho de ser de direita e de rejeitar o chamado politicamente correto, tudo aquilo que contesta um estado de coisas secular. Um Brasil que não se exibia em praça pública passou a se manifestar e a “causar” na internet. Sem dúvida, é a eleição das redes sociais, das fake news, dos grandes embates ideológicos em qualquer lugar, dos arroubos retóricos perigosos, das pressões sobre os oponentes e das ameaças. Há muita dúvida no ar. Fernando Haddad sustenta, porém, que a virada acontecerá. Diz que sente isso no ar. As últimas pesquisas também trouxeram algum conforto. A diferença entre os candidatos caiu um pouco.
No Rio Grande do Sul, o segundo turno será decidido entre dois candidatos do mesmo campo ideológico, José Ivo Sartori e Eduardo Leite. Mesmo assim, o tom subiu. Não há disputa pelo poder sem tensão e golpes baixos. Também aqui, segundo as pesquisas, o jogo está jogado. Os dois candidatos tiveram de declarar apoio a Bolsonaro, o grande eleitor, para não perder terreno. Leite oscilou entre o apoio imediato, o recuo e a adesão com ressalvas. Sartori foi com tudo e sua equipe apostou numa fusão marqueteira inimaginável: o “Sartonaro”.
O mundo observa o Brasil um tanto perplexo. A retórica agressiva e conservadora de Bolsonaro assusta parte da imprensa internacional. Não faltam também críticas ao fato de que o PT nunca fez um pedido de desculpas ao país por alguns dos seus malfeitos de um passado ainda muito recente e fumegante. Poucas vezes se viu e sentiu tanta tensão numa disputa eleitoral no Brasil. Amizades se desfizeram, familiares se dividiram, almoços de domingo viraram campo de batalha, mentiras foram defendidas como verdades e verdades foram desmentidas todo dia.
Faltou o grande debate de televisão entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Deveria estar na regra do jogo? A estratégia eleitoral impõe-se. Esquerda e direita já se esquivaram de debates. Uma pena. Os dados foram lançados. Ou ainda serão? A solidão da cabine dita indevassável pesará como um túmulo para muitos. Chegou a hora.JM

quarta-feira, outubro 24, 2018

Prevendo o futuro?


 Eu acredito no poder dos livros mesmo quando sinto que a civilização da escrita está em declínio. Procuro tempo para procurar em obras diversas respostas capazes de me arrancar da perplexidade. Pego na estante “O advento da sociedade pós-industrial”, de Daniel Bell. É um tijolo de 540 páginas que li, certa vez, na praia. Bell destacou-se como professor na Universidade de Harvard. Um liberal. No sentido americano, um conservador. Ótimo livro para época de eleições. Abre com uma provocação: “Este é um ensaio de previsão social. Pode alguém, entretanto, predizer o futuro?” A resposta do famoso intelectual é paradoxalmente categórica: “Não”. O futuro não existe.
Como, então, seu livro é um “ensaio de previsão social”? Acontece que ele, como bom intelectual, introduziu uma distinção entre predição e previsão. A predição seria impossível. A previsão, não. Intelectuais amam palavras e parecem crer que elas modificam a realidade. Predizer seria, por exemplo, antecipar quem vai ganhar uma eleição. Prever, seguir regularidades e constâncias. Bell fez previsão – ou predição? – sobre o fim das ideologias. Seja qual for a palavra, todos queremos saber o que vai acontecer. Como será o Brasil amanhã?
O que as regularidades indicam? O que os elementos disponíveis permitem antever? Daniel Bell escreveu cristalinamente como era do seu estilo: “A previsão só é possível quando se pode supor um alto grau de racionalidade por parte dos homens que influenciam os acontecimentos – o reconhecimento dos custos e coerções, a aceitação geral ou a definição das regras do jogo, o acordo quanto as seguir as regras, o desejo de coerência”. Podemos fazer previsões? Cada um responderá conforme a sua ideologia. Opa! Segundo Bell, não há mais ideologias. Digamos, conforme suas visões de mundo. Palavras? Ou novas realidades?
Ele tratou de antecipar as perguntas dos leitores: “Que valor têm as previsões? Embora não possam predizer os resultados, elas são capazes de especificar as coerções, ou limites, dentro dos quais as decisões políticas se tornaram efetivas. Considerando-se o desejo que têm os homens de controlar sua história, isto representa claramente uma vantagem no sentido de uma autoconsciência social”. Talvez o meu leitor se impaciente: “Onde quer chegar com isso?” A minha resposta também é cristalina: ao futuro. Não existe? O inexistente preocupa.
Em outro livro, igualmente famoso e de grande vendagem, “O fim da ideologia”, Daniel Bell afirmou até para surpresa dos mais afoitos: “A questão do tipo de ética que se deve aceitar é crucial, porque o caráter distintivo da política moderna é o envolvimento de todos os estratos da sociedade nos movimentos de transformação social, em vez da aceitação fatalista dos acontecimentos, como nas sociedades feudais ou camponesas”. Estamos servidos? A sociedade inteira está participando do jogo. Da constituição das regras do jogo também? Parece que sim. É um sistema representativo. E o futuro? Bate à porta. O que trará? O fim das ideologias ou o retorno delas pela janela?JM

terça-feira, outubro 23, 2018

Tem Sartre em Ipanema!


O Rio de Janeiro continua lindo. Passei o final de semana lá. É um lugar, como se sabe, informal. No ônibus de Juiz de Fora para o Rio tudo já se mostra acelerado. Entra uma jovem com um rechonchudo bebê.
– Você anda com ele assim por aí? – pergunta uma senhora.
– É que me separei hoje – diz a moça.
– Está fugindo de casa? – dispara a senhora.
– Sou chilena – informa a jovem mãe. – Ele assinou uma autorização para eu levar o menino. Não quer filho nem nada. Só quer cachaça.
Conta a vida na viagem. Todo mundo se interessa. Cada um faz uma pergunta. Corta para o táxi até hotel em Ipanema. Motorista discursa:
– Botaram os intelectuais no poder. Deu M. Botaram os operários no poder. Deu M. agora vai o maluco mesmo. Talvez dê certo. O Trump, que todo mundo esculhambava e que faz suas gafes, está indo muito bem. O homem sem trabalho e sem dinheiro não é ninguém. O resto até passa.
Liga o rádio depois de esgotar o seu comunicado de boas-vindas. Um economista em tom jovial ensina “para a galera” as vantagens do liberalismo econômico sobre a perspectiva estatizante da esquerda. Vai de François Quesnay a Paulo Guedes passando por Adam Smith. Hotel no Posto 9. De cara para o mar. A atendente é gentil. Não poupa erres e esses. É de Honório Gurrrrgel. Informa, depois de alguns minutos de espera e preenchimento anacrônico de papel, que podemos sorrir:
– O seu apartamento está sendo finalizado.
– Beleza. Em qual andar?
– Ainda não sabemos. Vai ser o que liberar.
Rimos. Pedimos para deixar a bagagem. Vamos almoçar enquanto o quarto ainda não liberado é finalizado. O rapaz tem um problema. Perdeu as etiquetas. Procura o colega, que saiu. Na falta de outra saída, improvisa com uma tesoura uma etiqueta sob medida para nós.
A vida flui. Salvo o trânsito. A polícia tranca três pistas no domingo à tarde para uma batida próximo ao aeroporto Santos Dumont e faz gente perder voos. Improvisa-se uma solução, em casos extremos, para o dia seguinte. A política fascina os cariocas. Em disputa pelo governo do Rio de Janeiro um ex-prefeito que, segundo os críticos, mora nos Estados Unidos, onde pagaria dez mil reais por filho na escola, e um ex-juiz que aparece em vídeo ensinando atalhos para abocanhar todos os auxílios possíveis do judiciário. Fake news? Como sempre, nada ilegal. Imoral? Isso é obviamente subjetivo. Vasco e Botafogo namoram o rodapé da tabela. O Mengão está lá em cima. Pouco sol. Carioca detesta tempo nublado e sinal fechado. Eu também. E tu?
Aproveitei o tempo. Reli “A idade da razão”, de Sartre, nas areias de Ipanema. A questão do livro é provocativa: somos livres para escolher? É um romance atual. Começa com um problema em pauta: deve-se ou não fazer aborto quando não se esperava nem queria filho? Na Zona Sul carioca, barulhenta manifestação em favor de Jair Bolsonaro. No avião de volta, casal de camiseta pró-capitão. E o pessoal de Fernando Haddad? Aos cochichos. Vale como pesquisa Ibope? O Rio de Janeiro continua lindo. Nunca vi tanta polícia na praia. No intervalo, fiquei sabendo que se pode fechar o STF com um cabo e um soldado. É simples.JM

segunda-feira, outubro 22, 2018

A decisão!


No seu pequeno livro “Informar não é comunicar”, Dominique Wolton faz uma distinção clara entre os dois termos que aparecem no título da obra. Informar é relativamente simples. Comunicar é que importa e complica.
Por quê?
Por ser uma relação.
Uma constante negociação. Comunicar passa necessariamente pelo reconhecimento do outro, dos outros, dos diferentes, dos irredutíveis, dos singulares, dos que não aceitam ser reduzidos à visão de mundo do interlocutor.
O sociólogo francês resumiu assim a questão: “Há duas concepções da comunicação que se opõem. A primeira, amplamente dominante, insiste na performance das tecnologias como progresso da comunicação numa espécie de continuidade que favorece o setor industrial, aquele que mais cresce no mundo. A segunda concepção, minoritária, na qual este livro se inscreve, parte da dimensão antropológica da comunicação e privilegia os processos políticos necessários para evitar que o horizonte da incomunicação entre os indivíduos e as culturas não se torne uma fonte de conflitos. Essas duas concepções não compartilham a mesma visão da relação entre o homem e a tecnologia”.
O que isso diz?
Diz que a tecnologia informa. O homem é que comunica. Ou se comunica. A informação pode ser técnica. A comunicação é política. Visão técnica é o nome que os liberais costumam dar à ideologia econômica que professam. O Brasil vive um momento singular. Há muita informação disponível e pouca informação? Ou há muito signo circulando com pouca informação e quase nenhuma comunicação? Se a comunicação implica a relação, estamos ferrados. Não existe zona de intersecção entre as bolhas que coexistem no espaço virtual ou na realidade física e áspera de cada cidade, bairro, empresa, escola, casa, bares, ruas.
Nunca tivemos tantos meios de comunicação e tão pouca relação, interação e negociação. Parafraseando Heidegger, a essência da comunicação nunca é comunicacional, mas sempre política. Nada mais simplório do que enxergar ideologia apenas na posição dos outros. Nada mais perigoso do que propor unidade sem diversidade. O que fazer com esse outro que me desafia, provoca, choca, critica, ataca e não cede?
Confundir informação com comunicação equivale a misturar meio e fim. Wolton questiona: “Em que consiste a ideologia tecnicista da comunicação? Em transferir para as ferramentas o trabalho de resolver problemas sociais para os quais elas não estão habilitadas. É crer que quanto mais tecnologia houver – amanhã teremos, por exemplo, 6,5 bilhões de internautas –, mais os indivíduos se compreenderão. Significa subordinar o progresso da comunicação humana e social ao progresso das tecnologias”. Temos muita tecnologia e cada vez menos compreensão. Tecnologia abundante não é sinônimo de mais democracia.
Quem decide o que somos e seremos? Em princípio, nós. A ideologia tecnicista sugere que máquinas e fluxos informacionais podem fazer isso por nós. Não funciona. A conta sempre chega. Conversa pesada? Cada época produz o peso que merece ou do qual padece.JM

terça-feira, outubro 16, 2018

Extinção dos dinossauros!


Passado o impacto, reflitamos sobre o que aconteceu em 7 de outubro. Um meteorito eleitoral devastou dinossauros políticos. O que será do Brasil sem Romero Jucá, Eunício Oliveira, Edison Lobão, Roberto Requião, Jorge Viana, Cristovam Buarque, Magno Malta, Marconi Perillo, Cássio Cunha Lima, José Agripino Maia, José Carlos Aleluia, Pauderney Avelino, Beto Mansur e outros elefantes longevos e barulhentos? O que será da nação sem um representante tradicional da família Sarney no parlamento ou no governo? Como viveremos sem Zequinha? Ao longo de diferentes governos Romero Jucá prestou serviços nefastos ao país. A sua frase mais famosa sempre será aquela sobre a necessidade de estancar a sangria da Lava Jato. Que faremos sem ele?
Os paquidermes ficaram pelo caminho abatidos impiedosamente pelos eleitores. Alguns, como Eduardo Suplicy, tiveram a ilusão de que voltariam. Outros, feito Lindbergh Farias, não souberam perceber, como Aécio Neves e Gleisi Hoffmann, a hora de ficar menor para sobreviver. O Rio Grande do Sul perdeu na Câmara dos Deputados Darcísio Perondi, que disputava com Carlos Marun o título de o mais fiel servidor de Michel Temer, o mais impopular presidente da história do Brasil. A aposta não foi boa. Temer virou o pior cabo eleitoral do mundo. Choram os dinossauros enquanto esvaziam as gavetas. O tempo da retirada chegou. Alguns, porém, tentarão voltar. Jucá certamente concorrerá a prefeito em 2020. Salvo se puder aparecer como ministro antes disso.
Alguns terão de procurar emprego. Sabem ainda trabalhar? A maioria viverá de suas gordas aposentadorias especiais e de suas poupanças. Dinossauros sempre podem surpreender. Ibsen Pinheiro e Pedro Simon, dois caciques do MDB gaúcho, representantes históricos da oposição ao regime militar, deram aval ao apoio do partido a Jair Bolsonaro. A renovação das cadeiras em disputa no Senado foi de 85%. Não significa que ficará melhor. Dificilmente será pior. Renan Calheiros conseguiu salvar o couro e permanecerá como vestígio de uma época abalada por uma catástrofe natural. Um dia a casa terá de cair. As casas caem. Às vezes, tarde demais.
Durante décadas os dinossauros viveram tranquilamente em Brasília à sombra das mansões públicas e do auxílio-moradia. Faziam semanalmente a migração entre os seus Estados e a capital federal. Não temiam tempestades nem fitavam o céu. Dominavam imensos currais eleitorais que lhes garantiam proteção contras as intempéries. Não deram a menor bola para o surgimento das redes sociais, que ainda não sabem usar. Alguns, mais evoluídos, já mandam e-mails sozinhos. Não foi suficiente. Ainda se ouve o grito de agonia desses gigantes abatidos. Não sabem o que dizer. Jucá culpa a mídia e a Lava Jato. Pena que Requião, o dinossauro na contramão do entreguismo e das conspirações, caiu junto com tantos quadrúpedes que não deixarão rastros. Só pistas.
Dobram os sinos. Os dinossauros voltam para casa. Alguns, cansados, escreverão as suas memórias tomando o cuidado de omitir o principal. Outros, inconformados, gastarão horas ao telefone costurando estratégias para um retorno incerto. A maioria não deixará saudades. Em breve, nos aeroportos, ouvirão comentários devastadores:
– Esse aí não era senador?
– Acho que não. Não me lembro. JM