terça-feira, fevereiro 05, 2019

Cabral descobriu o Brasil?


 Essa questão é velha entre historiadores. Ela comporta vários níveis de leitura. A mais simples é esta: o que significa descobrir? Achar o que ainda não se conhecia? Pode-se descobrir uma terra já habitada?  Quem não a conhecia? A resposta pode ser sumária: Cabral descobriu a terra que seria chamada de Brasil para os europeus que não a conheciam. Mas, se a terra já era habitada, a descoberta pelos europeus podia dar-lhes algum direito sobre ela? O relativista dirá: sim, pelos valores da época. Para amparar esses valores podia-se recorrer a dispositivos ardilosos: seriam esses habitantes da terra “descoberta” gente? Teriam alma? Seriam humanos?
Quando se decidiu que eram humanos, a questão essencial passou a ser a obrigação de salvar as suas almas pagãs. Nobre missão. O papa Paulo III, em bula de 1537, determinou que os “ditos índios e todas as demais pessoas que possam ser descobertas mais tarde por cristãos não devem de modo algum ser destituídas de sua liberdade ou da posse de sua propriedade, mesmo que estejam fora da fé de Jesus Cristo”. Não foi obedecido ao pé da letra. Os nativos foram, acima e antes de tudo, desapossados do que era deles.
Se a terra já era habitada, a “descoberta” transformou-se em ocupação ou invasão? Cabral tomou posse para os portugueses de uma terra com moradores. Qual o principal argumento para isso? A certeza de poder usar a força sempre que necessário e talvez a perplexidade dos donos da casa. Outra maneira de dizer o que aconteceu: os portugueses invadiram o Brasil em nome dos seus projetos de expansão. Em 1550, Carlos V, da Espanha, teve uma crise de consciência e convocou 14 teólogos para decidir ser era justa a conquista das terras e gentes da América. Aconteceu então, em duas etapas, o debate entre Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas, que ficaria conhecido como a “controvérsia de Valladolid”.
Sepúlveda inaugurou o pragmatismo radical: era justo, no seu entender, escravizar os índios por eles serem imorais. Além disso, não se comportariam racionalmente e eram mais fracos, nascidos para obedecer. Era, portanto, natural que fossem escravizados. Quem pode mais, domina e faz a lei. Claro que Sepúlveda caprichou na retórica: os selvagens obedeceriam aos mais sábios e prudentes, os civilizados espanhóis. A astúcia do algoz foi dizer que para libertar os índios da barbárie era preciso fazê-los escravos dos civilizados, os bárbaros com ideologia. Sepúlveda era discípulo de Aristóteles, que via escravos como ferramentas.
Las Casas enfrentou o conceito de barbárie. Encurralou a oponente. Sepúlveda argumentou também que era preciso subjugar os índios para que não praticassem canibalismo. Las Casas relativizou. Buscou explicar o fenômeno a partir dos valores dos próprios índios. Como terminou o debate? Os juízes acharam que seriam preciso pesquisar e saber mais para decidir. Cada debatedor se declarou campeão. A coroa espanhola fez um mix das ideias dos dois e tocou o barco. O progresso não podia parar. Assim foi.
Cabral foi o primeiro? – Outro ângulo da questão. Cabral foi o primeiro europeu a chegar a esta terra que seria chamada de Brasil? Para os índios, essa é uma polêmica irrelevante. Para a glória de Cabral, não. É possível que em 1498 uma frota de oito navios, comandada por Duarte Pacheco Pereira, tenha aportado no Maranhão e no Pará. Para não atrair a atenção dos espanhóis, a corte portuguesa teria escondido o fato. Em “Tratado dos Novos Lugares da Terra”, Pacheco escreveu. “No ano de Nosso Senhor de 1498, Vossa Alteza nos mandou descobrir a parte ocidental, passando a grandeza do Mar Oceano, onde é achada e navegada uma vasta terra firme, grandemente povoada”. Sendo assim, Cabral não descobriu o Brasil, que já era conhecido dos portugueses, mas de fato tomou posse dele, ou seja, invadiu-o a mando de Portugal. Até Américo Vespúcio teria vindo antes.
Existe também a hipótese de que Vincente Pinzon e Diego de Lepe tenham estado no Brasil em janeiro de 1500. No fundo, não interessa quem chegou primeiro, mas quem deu início à narrativa da descoberta e cumpriu o ritual de apossar-se deste “novo mundo” até então sem escritura. Cabral trouxe com ele o escrivão Pero Vaz de Caminha, que, com sua carta ao rei de Portugal, lavrou a certidão de apropriação do Brasil. Pediu propina pelo serviço prestado: “E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê”. Assim se inaugurou o Brasil.
No correr da carruagem, depois de se apropriarem do que tinha dono, os portugueses passaram a perna nos espanhóis, avançando sobre a demarcação estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas. A história é escrita pelos vencedores e pelos que têm equipe de comunicação e marketing. O Brasil, como toda a América, nasceu de invasões e fabulações. O tripé da construção do novo mundo nada tem de épico: invasão, escravização e saque.JM

sexta-feira, fevereiro 01, 2019

Antígona, Toffoli e Lula


      Ainda é tempo de falar disso. Morreu Vavá, irmão mais velho de Lula.
A relação deles era forte. Vavá tinha algo de figura paterna para Lula. O ex-presidente, preso em Curitiba, manifestou desejo de ir ao enterro. A lei permite. O vice-presidente da República, general Mourão, considerou o atendimento dessa vontade uma questão humanitária. A justiça, porém, não deixou. Alegou-se até que poderia haver fuga. Talvez acontecesse um ataque ao comboio e Lula fosse resgatado. Ou saísse correndo do velório sem ser alcançado. Veloz.
A ditadura militar permitiu que Lula, prisioneiro político, fosse ao enterro da mãe. Sófocles escreveu uma tragédia monumental: “Antígona”. Quando Polinices e Etéocles morrem em luta um contra outro, Creonte, que herda o trono de Tebas, ordena que o corpo de Polinices fique sem sepultura. Antígona decide desobedecer para enterrar o irmão. Lei divina contra lei terrena. Dignidade e humanidade contra abuso de legalidade. Vale lembrar que Polinices e Etéocles haviam feito acordo para governar em rodízio. Etéocles não quis passar o bastão. Polinices uniu-se aos rivais de Tebas para tentar recuperar o trono. Traído, traiu. Mesmo assim, o costume, a lei humanitária divina, garantia-lhe direito a uma sepultura.
Os advogados de Lula recorreram ao STF.
O ministro Dias Toffoli, sempre acusado de ser petista, inventou uma solução inédita: Lula poderia ver o corpo do irmão num recinto militar em São Paulo. O jurista Lênio Streck definiu bem a situação: Toffoli autorizou o cadáver a ir até Lula. Creonte teria aplaudido Toffoli, que se esforça a cada situação para provar que não é petista? Dificilmente. Creonte era a lei. Toffoli é um caso para uma análise freudiana. Fomos de Sófocles a Gabriel García Márquez, da tragédia ao realismo fantástico, do irrealismo ao surrealismo. A decisão de Toffoli chegou tarde. O morto já havia sido enterrado.
Antipetistas destilaram ódio.
Lembraram que o então presidente Lula não fora ao enterro de dois meios-irmãos. É fato. Não havia o mesmo vínculo afetivo com esses irmãos por parte de um pai que Lula passou a maior parte da vida sem ver e que teve mais de 20 filhos.
Lula parece condenado à invisibilidade. A sua ida ao enterro geraria imagens que correriam o mundo. O general Mourão, como destacou Lênio Streck, captou o efeito Antígona, o aspecto humanitário que se impõe diante da morte. Mesmo ao adversário se deve dar sepultura. Mesmo ao condenado se deve garantir o direito de chorar seus mortos. A lei foi feita para assegurar esse “direito natural” e sagrado.
Desse macabro episódio duas figuras saem com dimensões alteradas. O general Mourão sai maior. O ministro Toffoli sai ainda menor. Mourão repercutiu Antígona. Toffoli comportou-se como um Creonte querendo negociar. Mourão vem crescendo tanto que já sofre críticas do clã Bolsonaro. O general tenta colaborar com bons fatos para a própria biografia. Toffoli luta desesperadamente para ser uma nota de rodapé. Terá certamente direito a algo assim: chegou por rodízio à presidência do STF. Em 2015, 175.325 condenados saíram das suas prisões para chorar os seus mortos.
Lula não é tratado como preso comum.
É um troféu que a justiça esconde. JMS

O negócio da Vale


  1. Depois da tragédia de Mariana, a Vale reduziu em 44% os seus investimentos em segurança.
  2. Ao planejar o espaço administrativo e do refeitório em Brumadinho, a Vale analisou a trajetória da lama em caso de ruptura de barragem e, mesmo assim, resolveu colocar os equipamentos e as pessoas no caminho da morte.
  3. Mineradoras se autocontrolam fornecendo às autoridades laudos de segurança que compram no mercado correspondente.
  4. Está  nos jornais. Só ignora quem não tem interesse em ver.
  5. É o capitalismo minerador de riscos para empregados e moradores do entorno das operações.
  6. É o capitalismo do lucro máximo ao custo mínimo.
  7. As multas de Mariana ainda não foram pagas.
  8. O lobby das mineradores bloqueou aprovação de leis mais rigorosas no Congresso Nacional.
  9. Tudo está nesta manchete: “Capitalismo de compadrio’ vai ajudar a Vale após Brumadinho, diz Economist”.
  10. Precisa dizer mais?JMS