A modernidade representou como nunca o imaginário da unidade, da clareza, da identidade e da eliminação das contradições. O homem moderno queria ser transparente.
Paradoxalmente a modernidade levou da obsessão pela transparência ao culto da visibilidade. Um salto opaco. Ao longo dos séculos, a ciência moderna investiu na dominação da natureza. Aos poucos, no entanto, enormes brechas apareceram: a terra não é o centro do universo, o homem não é um ser soberano a ponto de ter consciência de todos os seus desejos e motivações. Freud cravou uma estaca no coração da vaidade e da racionalidade humanas: há um “continente escuro” aquém e além da racionalidade contaminando e influenciando as ações de cada homem.
Compreender a complexidade, a importância da diversidade, do universal, da relativização e do respeito à diferença e da pluralidade do ser humano exige um olhar generoso, rigoroso, atento ao todo e também à parte. Edgar Morin, sábio, pensador da complexidade – complexo é aquilo que se tece em conjunto, articulando vários fios –, sustenta que precisamos buscar a unitas multiplex. Mas o que é realmente essa unidade múltipla? Ou, dito de outra forma, como conciliar inconciliáveis, equilibrar antagonismos e alcançar unidade na diversidade e diversidade na unidade? Como ser um uno múltiplo? Como comunicar aquilo que parece estar além da comunicação?
A complexidade, pelo “princípio hologramático”, formulado por Morin, baseado em Pascal, explicita o paradoxo todo/parte: a parte está no todo, que está na parte. Para Edgar Morin, intelectual longevo, nascido em 1921, a unitas multiplex remete à complexidade, que implica diversidade, cruzamentos, diferenças, inter, multi e transdisciplinaridade. Esta transdisciplinaridade é muito mais do que uma justaposição de disciplinas, mas um saber produzido para além da compartimentação disciplinar. Ser complexo é buscar, ao mesmo tempo, a explicação (racional, lógica, abstrata) e a compreensão (concreta, relacionada à empatia, ao procedimento de colocar-se no lugar do outro). A complexidade exige pensar o universal e o particular num mesmo movimento. Ou pensar o abstrato pelo concreto e o concerto pelo abstrato. Ser complexo significa defender a importância do universal e do particular, do geral e do singular, do comum entre homens e do que os diferencia.
No livro Minha esquerda, Morin dá uma mostra dessa unidade na multiplicidade e dessa multiplicidade unitária. A epígrafe já diz tudo: “Eu sou um direitista de esquerda. Direitista porque valorizo muito as liberdades, mas, ao mesmo tempo, sou muito esquerdista, pois tenho a convicção de que nossa sociedade precisa de transformações profundas e radicais. Tornei-me um conservador revolucionário. Precisamos revolucionar tudo, mas conservando os tesouros da nossa cultura”.
No Método 5, o conceito ganha corpo: “Quanto mais a diversidade humana é visível, mais a unidade humana torna-se, hoje, invisível aos espíritos que só conhecem fracionando, separando, catalogando, compartimentando. Ou, então, o que aparece aos espíritos abstratos é uma unidade abstrata que oculta as diferenças. Precisamos conceber a unidade múltipla, unitas multiplex. Assim, a diversidade está inscrita numa unidade da vida. Esta, a partir de um primeiro ser celular, diversificou-se fervilhando pelos reinos vegetal e animal. Deve-se essa diversidade, quanto aos animais nascidos da reprodução sexuada, à singularidade oriunda da combinação de dois patrimônios genéticos, mas também ao desenvolvimento próprio e às experiências particulares vividas por cada um até a idade adulta; assim, entre os animais domesticados, as violências sofridas ou as carícias recebidas, determinam caracteres opostos”.
Conceber essa unitas multiplex significa, portanto, apostar na complexidade como visão de mundo e modo de existência, o que só pode ser atingido por meio de uma atitude transdisciplinar, mais do que inter e multi. Edgar Morin explica: “As palavras importam muito e, ao mesmo tempo, pouco. No caso de multi, inter e transdisciplinaridade, cada um desses termos tem uma contribuição a dar, mas nenhum se basta. O importante mesmo é a atitude epistemológica. A interdisciplinaridade junta disciplinas diferentes; a multidisciplinaridade, articula-as; só a transdisciplinaridade, porém, supera a particularidade, conjuga os saberes e faz com que aportes diferentes trabalhem por um mesmo fim”. Qual fim?
O fim também deve ser uno e múltiplo: proteger o homem e o seu ambiente, o homem no seu ambiente, o meio sem qual o homem não floresce, o homem sem o qual o meio permanece virgem, a virgindade do meio como marca simbólica de uma origem que não pode desaparecer. A ilusão do homem moderno consistiu em pensar que podia dominar uma natureza de recursos inesgotáveis. Nesse sentido, o homem é complexo é, ao mesmo tempo, mais lúcido, mais modesto, mais pragmático e mais prudente. O homem moderno, na sua simplicidade cientificista, queria construir o melhor dos mundos. As suas utopias eram totalizantes. O homem complexo, como indica Morin, sabe que não pode chegar ao melhor dos mundos, mas nada o impede de trabalhar por um mundo melhor. Eis o desafio.
Edgar Morin prega uma reforma do pensamento. Precisamos aprender a pensar complexamente para tentar responder às incontornáveis questões kantianas: o que podemos saber? O que devemos fazer? O que temos direito de esperar? O que é o homem? Talvez a melhor maneira de responder a essa última questão seja tentar dizer quem é o homem que propõe essa reforma de pensamento, contrariando o primado das especializações, em pleno século XXI. Quem é esse Edgar Morin, uno na sua multiplicidade de personagens, de saberes, de posturas, de visões de mundo e de obras? Tomaremos um homem, Edgar Morin, na sua singularidade para pensar o ser humano na sua universalidade e também na sua relatividade.
Quem é o homem?
Pensador pluralista, nascido em Paris, Edgar Morin mescla as ciências humanas com a biologia e a física, entre outras disciplinas do conhecimento compartimentado, para estudar os problemas do mundo contemporâneo. Interessa a ele compreender o mundo vivido com o objetivo de imaginar, longe das certezas e das leis históricas, possíveis desdobramentos dos imaginários futuros. Morin assegura que o Sujeito é fundamental na construção do presente. Enquanto houver sonho de mudança social, afirma, haverá política, reforma, utopia e transformação.
Entre os livros fundamentais que escreveu devem ser citados com paixão O Cinema e o Homem Imaginário, O Paradigma Perdido, a natureza humana, As Estrelas, os seis volumes do Método, Para Sair do Século XX , Terra-Pátria, Meus demônios e Minha esquerda. Obras plenas de vida, de criatividade e de originalidade. Elogios da inteligência humana e convites ao prazer da reflexão.
Nos tempos de Jean-Paul Sartre intelectual engajado, os vendedores de certezas encantavam o mundo e afirmavam-se como fenômenos do pensamento. Passada a época das utopias racionalistas que prometiam o paraíso, mergulhadas no irracionalismo metafísico e na arrogância de uma cientificidade insustentável, espalhou-se que não havia mais grandes intelectuais para estudar a complexidade da vida. Magnífico erro. Mera simplificação.
Edgar Morin está aí para provar o contrário. Ele não vende ilusões. Em Meus Demônios, obra na qual resume a sua luta e as ideias obsessivas que o dominaram ao longo de uma vida de aventura intelectual, conta como descobriu, durante a Segunda Guerra Mundial, o marxismo. O encantamento durou pouco. O homem generoso, sempre em busca da tolerância, percebeu, segundo a expressão de Karl Korsch, que o ideário marxista tornara-se uma “utopia reacionária”. Queria ser muitos numa identidade.
Para ele, vive-se hoje a decadência de um tipo de ideia de futuro: “Uma concepção determinista, otimista e crente no progresso. Acreditava-se acriticamente na técnica, na ciência e nos efeitos benéficos, necessariamente emancipadores, da Razão. Nas nações do socialismo real ou no mundo capitalista, com a mesma intensidade, apostou-se no futuro radioso. A crise não é derivada apenas da queda do comunismo, mas também de um abalo geral de civilização. A instabilidade econômica é global (…) Descobrimos, porém, que a ciência também pode produzir ignorância, pois o conhecimento fecha-se na especialização. A indústria fabrica objetos úteis e também ameaças ao universo como a poluição. Por fim, o fundamento mesmo do futuro radioso não se sustenta mais: ninguém sabe o que acontecerá amanhã. Não há modo de fazer previsões seguras”. Complexidade significa também saber viver na incerteza constitutiva da vida real.
Para Morin os intelectuais e cientistas adoram denunciar o cretinismo dos meios de comunicação de massa e dos incultos, sem jamais admitir que os espíritos simples possuem também um saber e a capacidade de participar intensamente da emoção de um filme, por exemplo, e ainda assim estabelecer a diferença entre ficção e realidade. Os intelectuais, afirma, são alienados, através de uma ideologia abstrata, que não podem suportar a alienação dos outros pelas telenovelas.
Irônico, Morin salienta o essencial: os intelectuais atacam o conformismo e os estereótipos e esquecem que eles mesmos formam uma subcultura convencional, cheia de estereótipos, conformista e preconceituosa. Nenhuma moda escapa-lhe: estruturalistas, marxistas, althusserianos, eliminadores da ideia de homem e de sujeito, “cretinos de todo tipo”, recebem a sua lambada. Solitário, Morin sabe que pouco pode contra os representantes da elitização de um saber impotente em relação à complexidade existencial, mas poderoso enquanto mecanismo de dominação. Ser complexo implica participar de um campo de saber e, ao mesmo tempo, se necessário, entrar em conflito com ele.
Intelectual, sugere Morin, é quem através do ensaio, do texto de revista ou do artigo de jornal, “de maneira não-especializada” (fora do jargão), mas com riqueza de informação, trata dos grandes questões humanas com a finalidade de complexificá-las. Interdisciplinar de fato, Edgar Morin odeia as especializações que não procuram o intercâmbio, perdem a visão de globalidade e esquecem a comunicação com a sociedade. Homens de saber alheios à dialógica da complexidade não passam de gafanhotos – simpáticos, quando isolados; predadores, em bando.
Terra-Pátria, no qual colaborou Anne-Brigitte Kern, ê o livro fundamental para o exame do fenômeno nacionalista do final do século XX. Tudo está nele: pátria, nação, universalismo, identidade, ecologia, política, comunidade, etc. Os mecanismos para a compreensão da complexa rede social contemporânea são fornecidos com a limpidez costumeira ao texto de Morin.
A razão para o seu compromisso com a transformação é simples: “Ninguém vive sem projeções relativas ao devir ainda que seja em nome de seus próprios filhos. A angústia do futuro torna-se um sofrimento do presente. Precisamos operar com uma dialética temporal: pensar o futuro sem abandonar o presente. O futuro está doente. Mergulhamos em um nevoeiro histórico. Isso repercute sobre o presente. Somos seres de raízes e de mudança, de comunidades e de universalização. Quando o futuro está doente, acaba ocorrendo um retorno ao passado. Acontece que o futuro pode ser também erro e superstição. O medo instaura a retomada virulenta, por exemplo, do integrismo religioso. Nossa tarefa é construir um novo futuro, diferente daquele que faliu: um futuro da consciência e da vontade. O amanhã não será oferecido pela história”.
Nos longos invernos parisienses, beber as suas palavras sábias era um exercício fundamental de interpretação da fronteira entre o real e o imaginário. Certa vez, enquanto brincava com a sua gata Herminette, no seu apartamento no tradicional Marais, Morin sintetizou: “Devemos compreender que não somente no plano filosófico, mas também no científico, não existe certeza teórica absoluta. Temos certezas sobre fatos, por exemplo, que tem sol quando tem sol, ou que o sol aparecerá a tal hora amanhã e a tal hora depois de amanhã; assim, talvez, por algum tempo. Essas certezas estão situadas no tempo e no espaço e são biodegradáveis, pois a Terra não girou sempre com a mesma velocidade em torno do sol e em torno dela mesma. Houve um momento em que a Terra não existia; haverá um momento em que o sol explodirá”. Tudo passa. Tudo se renova. Tudo é ciclo.
A incerteza está na base da investigação “científica” e da descoberta de novos conhecimentos: “Nossas certezas não são eternas. Nenhuma teoria científica – e aí reside, creio, a importância da contribuição de Karl Popper – está segura de ter certeza absoluta. Aquela que num instante específico conforma-se mais aos dados em questão impõe-se. Mas pode muito bem ser substituída por nova teoria, e a prova é que praticamente todas as teorias científicas do século XIX foram ultrapassadas no século XX ou provincializadas”.
A imaginação, a criatividade e a efemeridade participam da montagem de um edifício teórico: “Uma teoria é uma construção do espírito e, de resto, sabemos que o conhecimento não é o espelho da realidade, mas tradução e reconstrução de um mundo do qual recebemos mensagens através de nossos sentidos, como os olhos, que são traduzidas e codificadas por nosso sistema nervoso e retrabalhadas pelo cérebro que faz delas uma percepção. Se todo conhecimento é reconstrução e percepção, não pode ter valor de reflexo absoluto do real. Somos, portanto, obrigados a negociar com a incerteza”. Sempre.
O século XX teve de esmagar os determinismos e aceitar o imprevisível como parte do jogo natural: “De outra parte, tivemos de abandonar, felizmente, a ideia de que o universo era uma máquina determinista perfeita, pois quando se tem tal máquina pode-se prever o futuro. Laplace imaginava que um demônio poderia conhecer todos os acontecimentos do futuro e do passado. Na realidade, estamos num universo que comporta desde o princípio o imprevisível. Desde o começo, existe calor, e o que é o calor? Agitação de partículas ou de moléculas cujos momentos particulares não podemos prever. Somente com sistemas fechados é possível estabelecer leis estatísticas gerais”. A guerra continua. A vida também.
Edgar Morin abraçou, sem medo, o risco: “A história de nosso universo sempre comportou a incerteza: colisões de partículas ou de galáxias, logo com destruições mútuas, bifurcações, riscos, etc. Quando se olha a história da Terra, vê-se que ela não foi linear; houve acidentes, cataclismos ecológicos como os que provocaram o desaparecimento dos dinossauros. Penso que vivemos num mundo de mistura de ordem e de desordem – sendo ordem tudo que diz respeito ao determinismo, à estabilidade, à regularidade, e desordem tudo o que é colisão, agitação, destruição, explosão, irregularidade. Devemos desenvolver estratégias de ação face a tal universo”. Ordem e desordem, certeza e incerteza, eis a unitas multiplex.
Numa das nossas tantas entrevistas, Morin debruçou-se sobre a mais óbvia das perguntas: o que é a complexidade? “Trata-se do pensamento que liga os conhecimentos separados. Por que ligar? Porque o conhecimento só é pertinente quando situado no seu contexto e na globalidade. Ligar, contextualizar e globalizar fazem parte da necessidade natural do conhecimento. Para saber ligar, entretanto, é preciso utilizar instrumentos de pensamento estranhos aos procedimentos científicos clássicos, que obedecem à causalidade linear simples, a uma lógica rígida e que obedecem sobretudo ao princípio de separação. O homem, por exemplo, que é ao mesmo tempo um ser físico, químico, cerebral, mental, espiritual, social e cultural, é estudado de maneira fragmentada: a física, a química, a biologia, o cérebro, o espírito, a cultura e a sociedade, a psicologia, etc. Ora, em realidade essa separação não nos permite de compreender a complexidade humana. O pensamento complexo reage contra essa situação, sem ser, contudo, apenas o contrário do pensamento simples, e integra os modos de pensar simples e complexos numa concepção mais rica. Trata-se da ‘dialógica’ do simples e do complexo, do separável e do não-separável, da ordem e da desordem, da ‘dialógica’ entre a lógica clássica e a transgressão lógica quando esta se impõe, ou antes entre a lógica clássica e a racionalidade aberta. Não se pode, portanto, aprender o pensamento complexo, sobretudo quando se tem a formação de um sistema reducionista, em um dia. A complexidade exige um novo e difícil aprendizado e a reforma do pensamento, a qual demanda a reforma da educação”. Essa reforma será uma revolução.
Relativizar implica colocar em relação o universal e o particular. Respeitar a diferença exige um comportamento complexo capaz de aceitar a união de opostos, mecanismos antagônicos e, ao mesmo tempo, complementares. Educar para o futuro passa por uma reforma de pensamento que valorize o pluralismo como convivência e equilíbrio de contrários. O grande perigo de tempos pragmáticos é a simplificação. Um exemplo de simplificação é a meritocracia, que põe em competição desiguais, por falta de mesmas oportunidades de preparação, como se fossem iguais. A meritocracia, nos termos que vem sendo praticada, reproduz as desigualdades do ponto de partida e funciona como um sistema injusto de hierarquia social. O mérito é um ideal a ser buscado. A meritocracia é o efeito perverso desse ideal. Elimina a pluralidade, não relativiza os obstáculos e uniformiza diferentes como se fossem iguais. Nega a complexidade. JM