terça-feira, março 20, 2018

Honra e toga


Ideologização da morte

      Poucas vezes o Brasil esteve tão ideologizado.
Tomo aqui o termo ideologia num dos seus sentidos, o mais comum, aquele que coloca a visão de mundo acima do mundo da visão. O Brasil esteve assim em 1954, em 1964 e desde 2016. Sempre termina em tragédia. Poucas vezes direita e esquerda foram conceitos tão concretos. A ideia de que não há mais direita e esquerda é uma fakenews da direita. O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco trouxe à tona o pior do Brasil em várias camadas. A primeira e mais cruel é a da própria execução.
Em segundo plano, com a torpeza que nos caracteriza, veio a ideologização total da morte. Um deputado federal e uma desembargadora atacaram a morta nas redes sociais. A magistrada defecou sem o menor pudor: “A questão é que a tal Marielle não era apenas uma ‘lutadora’; ela estava engajada com bandidos! Foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu ‘compromissos’ assumidos com seus apoiadores. Qualquer outra coisa diversa é mimimi da esquerda tentando agregar valor a um cadáver tão comum quanto qualquer outro”. O deputado, membro destacado da bancada da bala, disparou à queima-roupa: “Engravidou aos 16 anos, ex-esposa do Marcinho VP, usuária de maconha, defensora de facção rival e eleita pelo Comando Vermelho”. O perfil de um delegado pernambucano fez o mesmo.
Ele jura que a postagem não é sua. A ver.
Tudo falso. Nenhuma das afirmações é verdadeira. O MBL, aquele mesmo que se valorizava pelo suposto apartidarismo dos seus militantes e agora terá candidatos por partidos altamente renovados como o DEM, logo propagou a baixaria. Muita gente espalhou a perversidade sentindo uma espécie de excitação. Por que tanto empenho em desqualificar uma vítima? Por que a vítima era mulher, negra, lésbica, de esquerda, combativa e contra a intervenção federal no Rio de Janeiro? Por que ela denunciava a violência policial na periferia? O pior mostrou a sua cara sem maquiagem. A direita botou na rua o bloco do “nós” contra “eles”. O “nós” apresentou-se como branco e “de bem”. O “eles” foi designado como sendo esse resto, essa massa toda com vida de gado.
Há semelhanças entre o Brasil de 1954, 1964 e 2018? Há. Uma. Profunda, básica, cruel: a desigualdade continua sendo um abismo. Com o que alguns tentam combater essa desigualdade profunda e devastadora? Com repressão cega ou com a ideologia de uma suposta e neutra meritocracia. A parte desfavorecida, o rodapé da tabela social, não se esforçaria o suficiente para “subir”. A mensagem nem tão subliminar assim é obscena: quem luta, vence. A bandidagem deve ser reprimida. Óbvio.
O problema está em confundir bandidos com pobres e em fazer intervenção apenas no território dos menos aquinhoados pelo sistema.
Por que uma parte da sociedade, justamente aquela que goza da melhor situação, não quer que uma mulher negra, favelada e de esquerda, executada no meio de uma guerra social, seja transformada em mártir? Por que é preciso espalhar tantas mentiras para tentar enxovalhar o passado de uma pessoa assassinada? Que Brasil triste! Estamos acostumados.  Brasil, país do passado.
A desembargadora que não honra a toga voltou ao ataque ontem. Derramou preconceito na sua rede social: “Well, eis que se não quando, ouço que o Brasil é o primeiro em alguma coisa!!! Apuro os ouvidos e ouço a pérola: o Brasil é o primeiro país a ter uma professora portadora de síndrome de down!!! Poxa, pensei, legal, são os programas de inclusão social… Aí me perguntei: o que será que essa professora ensina a quem???? Esperem um momento que eu fui ali me matar e já volto, tá?”
Volta!!! Que medo.JM

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