sábado, outubro 28, 2017

Vitória do espirro!


Deu a escatológica.
Venceu a bandalheira.
 Michel Temer ganhou mais uma. O professor titular de Ética da Unicamp, Roberto Romano, cravou: “O resultado mostra que efetivamente estamos nos últimos momentos do Estado Democrático de Direito”. Exagero? O francês Guy Debord ensinava: “O espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. O dinheiro manda. A política brasileira não canta os ideais e seus épicos, mas a força da grana e das suas armas de convencimento. As declarações de deputados durante a votação foram novamente patéticas: voto com gosto de açaí, voto em tom da palhaçada, voto performático, voto de ocasião.
Tudo isso na semana em que os dados do Mapa da Desigualdade mostraram que os moradores dos jardins paulistanos – ricos e brancos – vivem em média 79 anos enquanto os habitantes do periférico Jardim Ângela, pobres e não brancos, contentam-se com 55. A diferença de renda entre bairros paulistas chega a oito vezes. O sociólogo Américo Sampaio traduziu assim tais disparidades: “Isso mostra que você tem na região central da cidade uma ilha de privilégios”. Contra isso parece só haver um antídoto: não confiar em sociólogos e professores de ética. São todos suspeitos de comunismo. As estatísticas conspiram contra Temer: “Em 2 anos, milhões ficam abaixo de pobre no Brasil e ganham menos de R$ 140”. Mesmo assim, muitos deputados votaram pela nova estabilidade econômica e pela “evidente” melhora da economia.
Abertos os cofres, Temer ganhou a parada. O resultado ficou aquém do esperado e anunciado pela tropa de choque do presidente, que enxerga o país com lentes especiais. Não foi uma vitória de Pirro, conforme a expressão histórica sempre repetida, mas uma vitória de espirro. Muitos foram contaminados pelo vírus das emendas parlamentares. Na sessão da Câmara dos Deputados, transmitida ao vivo para todo o país, foi delicioso ver e ouvir deputados do DEM, como José Carlos Aleluia, combativo militante anticorrupção da época do governo Dilma, revelar-se um discreto apoiador da interrupção da investigação contra Temer. Quem te viu, cidadão baiano, quem te vê!
Livre, embora combalido, Temer voltará às suas reformas. É tudo agora, pois 2018, ano eleitoral, não será propício para medidas antipopulares. Ele tentará mudar a Previdência. O preço é mais alto. Precisará de 308 votos para algumas alterações. O balcão de negócios será reaberto em tempo integral. Para o economista André Perfeito ficou “evidente que o capital político dele e do seu grupo se esvai e talvez não sobrem fichas suficientes para reformas significativas”. As armas de convencimento terão de ser azeitadas e reforçadas. Roberto Romano revela o perigo: “O cidadão está totalmente afastado e desconfiado dos operadores do Estado. O resultado desta quarta-feira é uma volta a mais na descrença popular no sistema representativo”.
Quem se importa com isso? Temer comemora.
Venceu mais uma batalha.
Não há mais Rodrigo Janot no seu encalço.
O caminho está livre. Se é corrupto talvez se fique sabendo depois do seu mandato.
Para que pressa?JM

domingo, outubro 22, 2017

Cabeça oca


“Nós somos os homens ocos/Os homens empalhados/Uns nos outros amparados/O elmo cheio de nada”. É isso que de fato somos? Volto a esse assunto do famoso poema de T.S. Eliot. A Terra é a nossa casa. O que estamos fazendo com ela? O Brasil é nosso lar.
O que estamos fazendo com ele?
Michel Temer é um personagem que me parece caber inteiro nessa definição, homem oco, empalhado, o elmo cheio de nada. Não digo isso por uma rejeição ideológica rasteira.
Acontece que ele encarna a caricatura do pior que nos acostumamos a conhecer: a mão que se movimenta freneticamente enquanto ele fala e que termina cada frase sentenciosa com o dedo indicador em riste estripando adversários, a linguagem bacharelesca, a mesóclise pedante, o botox repuxando a face.
Eis, talvez, o problema. Nossos políticos não lembram pessoas de verdade, autênticas, reais, defensáveis, complexas. Lembram bonecos em cena. Como representante mais acabado dessa caricatura, Temer teria de chegar ao topo da carreira. Tivemos políticos odiosos no passado. O escritor José de Alencar foi um deles. Escreveu, como mostrei em “Raízes do conservadorismo brasileiro”, esta análise abominável sobre a escravidão: “Os filantropos abolicionistas, elevados pela utopia, não sabem explicar este acontecimento. Vendo a escravidão por um prisma odioso, recusando-lhe uma ação benéfica no desenvolvimento humano, obstinam-se em atribuir exclusivamente às más paixões humanas, à cobiça e indolência o efeito de uma causa superior”.
Um crápula.
Eram os valores da época? Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Castro Alves e tantos outros conheceram a mesma época. Alencar perguntava retoricamente ao Imperador: “É a escravidão um princípio exausto, que produziu todos os seus bons efeitos e tornou-se, portanto, um abuso, um luxo de iniquidade e opressão?” Ele mesmo respondia para sua desonra: “Nego, senhor, e o nego com a consciência do homem justo, que venera a liberdade; com a caridade do cristão, que ama seu semelhante e sofre na pessoa dele. Afirmo que o bem de ambas, da que domina como da que serve, e desta principalmente, clama pela manutenção de um princípio que não representa somente a ordem social e o patrimônio da nação; mas sobretudo encerra a mais sã doutrina do evangelho”.
A retórica de Joaquim Nabuco era bem outra: “A escravidão não é um contrato de locação de serviços que imponha ao que se obrigou certo número de deveres definidos para com o locatário. É a posse, o domínio, o sequestro de um homem – corpo, inteligência, forças, movimentos, atividade – e só acaba com a morte. Como se há de definir juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou o que este não pode, contra o senhor? Em regra o senhor pode tudo. Se quiser ter o escravo fechado perpetuamente dentro de casa, pode fazê-lo; se quiser privá-lo de formar família, pode fazê-lo; se, tendo ele mulher e filhos, quiser que eles não se vejam e não se falem, se quiser mandar que o filho açoite a mãe, apropriar-se da filha para fins imorais, pode fazê-lo. Imaginem-se todas as mais extraordinárias perseguições que um homem pode exercer contra outro, sem o matar, sem separá-lo por venda de sua mulher e filhos menores de quinze anos – e ter-se-á o que legalmente é a escravidão entre nós. A Casa de Correção é, ao lado desse outro estado, um paraíso”. A morte também parecia mais leve.
Eram ousados os abolicionistas. Antônio Bento, o carola que organizou fugas em massa de escravos e fundou o mais radical dos jornais engajados na luta pela abolição, não perdoava desvios de conduta. “A Redempção” era um chicote: “Empregado público, dependente por sua natureza, do governo, jamais devia ser redator de jornais e, senão, leiam as Notas Diárias do Diário Mercantil e verão que aquela seção é sempre um turibulo fumegante a todos os presidentes, chefes de polícia et religua. Para que meter-se a escrever em jornais quem não tem a independência precisa? Quando o homem tem habilitação para escrever, mas não pode fazê-lo com independência e arrisca a pena, vai fazer versos porque isso a ninguém ofende. O autor das Notas diárias se tivesse um olho de menos poderia ser um grande Camões, mas como tem os dois perfeitos, seja um João de Deus”. Havia tutano nos seus elmos.
Como estamos agora? Homens ocos, empalhados, elmos vazios? O passado tem muito a nos ensinar. Em 13 de maio de 1898, dez anos depois da abolição, um escriba cravou: “Se sob o Império definhava o regime da escravidão, na República tem a nossa pátria agonizado nos braços de maus governos. Em cada Estado existe um cacique que governa à sua vontade e perpetua-se no poder por si e por gentes da sua tribo e força é suportar, não há para onde apelar. E o povo humilde e paciente tudo suporta, até a miséria, com evangélica resignação”. Ainda não nos livramos dos caciques de cabeça oca. Até quando? Precisamos nos apressar para salvar a casa da venda dos móveis. Vende-se o fogão para pagar o almoço. A janta era só um luxo do passado.JM

sábado, outubro 21, 2017

Nada será como antes!



      Fiquei sabendo das novidades: não haverá mais emprego com carteira assinada. Nem emprego. Só empreendedorismo. O trabalho e o ensino presencial vão acabar. Tudo será feito a distância. O sistema de aposentadorias públicas será extinto. Cada um poupará para quando ficar velho e quiser ou tiver de parar. O casamento com papel assinado só sobreviverá como ritual. Viagens de trabalho perderão o sentido. Tudo será virtual. As viagens turísticas não serão afetadas por uma questão de rentabilidade e de culto ao deslocamento sem fins utilitários. Carros não terão motoristas. O prazer de dirigir será substituído integralmente pelo de falar ao celular durante o trajeto. Na falta de com quem interagir, robôs cumprirão também essa tarefa.
As notícias factuais serão escritas por robôs jornalistas, que não entrarão em sindicatos nem terão data-base salarial. O smartphone sugerirá a cada segundo o que fazermos. Nada será deixado ao acaso. Todas as nossas reações são monitoradas permitindo que nos sejam indicadas soluções para problemas que ainda nem detectamos ou vimos.
– Prepare o seu Rivotril.
– Por quê?
– Sua ansiedade está vindo.
– Algo mais?
– Sim. Você terá um resfriado dentro de 72 horas.
Ficaremos enfim livres de tudo o que nos assoberba. Mas não haverá drama quanto ao que fazer do tempo livre. Tudo está previsto. Séries preencherão cada minuto de nossas existências liberadas das corveias do trabalho e da utilidade. Chegaremos aos 120 anos nas próximas décadas em condições de consumir. Nosso cartão de crédito será administrado por um algoritmo. Teremos mais tempo para ser preenchido por nossas máquinas domésticas atenciosas e precisas. Nada do que estou dizendo é novidade ou ficção científica. Resolvi apenas sintetizar as coisas. Não precisaremos mais digitar. Caminhar será opcional ou por recomendação médica. Cada gesto nosso será controlado e passível de punição mesmo se praticado no banheiro de nossa casa.
Avançaremos em organização. Viveremos, como no jargão do futebol, uma existência apoiada. Aplicativos infalíveis nos indicarão como decorar a sala, arrumar a cama, escrever um romance capaz de ser premiado, escolher o prato do jantar com amigos, mandar flores para a amada ou amado, fazer uma poesia para estimular o cérebro, pintar um quadro para ter uma experiência espiritual e decidir em quem votar. Humanos serão dispensados da tarefa de ensinar. No pós-construtivismo tecnológico integral, cada um aprenderá com ajuda de dispositivos inteligentes na hora que quiser, puder, precisar ou sentir prazer. As relações sexuais também serão assistidas por computador para melhorar o desempenho, auxiliar em caso de fracasso ou indicar novas posições.
Estou com medo de tanta liberdade, tanta autonomia, tanta independência. Ainda deverei viver minha transição para o novo modelo existencial. Parece que já existe um aplicativo de orientação. O entubamento começa mais cedo. Nunca mais estaremos sozinhos. Cada um agora tem a companhia permanente de uma máquina para chamar de sua.JM

domingo, outubro 15, 2017

Obra imortal

*


O fascismo tentou, bem que tentou, era esse o objetivo: calar o cérebro prodigioso de Gramsci por 20 anos. O representante do Ministério Público assim se manifestou quando do julgamento dele, em 1928. Que a prisão significasse a paralisação do perigoso cérebro daquele comunista. Provas, não conseguiram para condená-lo e a seus companheiros. Mas isso, pouco importava ao fascismo, pleno das convicções de que era necessário prendê-lo e aniquilá-lo. Foi na prisão que Gramsci produziu uma obra imortal – os famosos “Cadernos do Cárcere” – que suscita estudos e desdobramentos ininterruptos até hoje, inesgotável fonte. Doente, muito doente, durante todo o tempo em que esteve preso, não se rendeu. Disciplina de comunista, estoico, tinha consciência de que podia dar uma poderosa contribuição à humanidade. De sua capacidade, deu testemunho o próprio acusador. Enganou-se quando à hipótese de paralisar seu cérebro. Gramsci nos legou uma obra teórica de profunda repercussão para a política e para a cultura, para a Revolução, particularmente para a Revolução no Ocidente. Foi sua vingança, bendita vingança.



A liturgia fascista, pensada com rigor. 

O fascismo nunca deixou de lado a liturgia. 

A política não prescinde dela, mais ainda a de Mussolini. 

Nada devia estar fora do lugar no Tribunal Especial para a Defesa do Estado em Roma entre os dias 28 de maio e 4 de junho de 1928. 

O show judiciário devia ser perfeito, com pompa e circunstância, e o Judiciário gosta muito de pompa e circunstância, em qualquer situação. Afinal, poucos duvidavam das inevitáveis sentenças condenatórias, e para tanto, o cerimonial devia ser denso, forte, com todo o aparato necessário para dar impressão de que era um julgamento, sem cartas marcadas. De aparato o fascismo entendia, como o nazismo. 

Quem entrasse no tribunal, de chofre depararia com um duplo cordão de soldados com elmos negros, o punhal ao lado, os mosquetes com a baioneta à mostra. Para evidenciar força, impor, isso, impor respeito. A farda impressiona. 

Os juízes, em uniforme de gala, um ritual fúnebre próprio de corte marcial. Presidente, general Alessandro Saporiti. Relator, advogado Giacomo Buccafurri. Jurados, cinco cônsules da milícia fascista. Procurador, advogado Michele Isgro. 

Mussolini, cioso do poder, já havia substituído a magistratura ordinária por uma mais afinada com os objetivos do fascismo. Tudo de acordo com a nova ordem. 

O judiciário ordinário havia dado mostras de insubordinação ao processo avassalador de fascistização dos órgãos do Estado. Urgia a mudança. 

Mussolini, que não era bobo nem nada, pesou a mão e instituiu o Tribunal Especial para a Defesa do Estado, que se reunia naqueles dias, e sabia o que queria: o Duce já o orientara. Tribunais dessa natureza, como este surgido a partir de uma ordem de cima, obedecem ordens. Agiria sob uma palavra de ordem: nenhuma contemplação com os inimigos do Estado fascista. 

Em novembro de 1926, fora encerrado qualquer simulacro de democracia. Mussolini, com sua “Legislação Especial”, dissolvia o Parlamento e todas as organizações de oposição, proibindo até suas publicações, jornais, revistas, o que fosse. 

O fascismo não vacilava: houve prisões em massa, em especial de militantes e dirigentes comunistas, inclusive parlamentares comunistas – os mandatos sob o fascismo não valia mais nada. 

Aquele 1926 fora o ano napoleônico da revolução fascista, segundo a definição do próprio Duce. 

E naquela sala, naqueles dias, estavam alguns dos piores inimigos do fascismo, entre os quais notórios comunistas. 

O fascismo não desconhecia o perigo representado pelos dirigentes do PCI, ali presentes, entre os quais, Umberto Terracini, Mauro Scoccimaro e Giovanni Roveda, além do mais notório deles, intelectual respeitado, secretário-geral da organização, Antonio Gramsci. Eram 22 réus. 

Os comunistas haviam definido entre si o comportamento no tribunal: admitir pertencer e atuar no Partido, e negar qualquer função dirigente. Negar a condição de comunista, nem pensar. 

Gramsci foi detido no dia 8 de novembro do ano napoleônico, o trágico 1926. 

Iludira-se com a chamada imunidade parlamentar, e foi arrastado para a prisão. Muitos em torno dele já o haviam aconselhado a sair da Itália, ao menos por algum tempo, que o quadro político inclinava-se ao agravamento, com o fortalecimento do fascismo e suas medidas discricionárias. 

Falou-se na sua ida para a Suíça. Os dirigentes deviam permanecer na Itália até quando possível, e só deveriam sair do país quando pudessem justificar tal atitude também diante dos operários – esta era a posição de Gramsci. 

Pagou pra ver, como dirigente responsável. Não como mártir, condição que sempre recusou. Não se inclinava a quaisquer gestos espetaculares, grandiosos. Fizera-o por compromisso com seu partido e com a classe operária italiana. Tivesse certeza de que aquilo pudesse ocorrer, provavelmente teria ido para o exílio, momentâneo que fosse. 

Acreditou pudesse falar no dia seguinte no Parlamento, dia 9 de de novembro, para protestar contra as medidas discricionárias do fascismo. A prisão se deu em sua residência, às 22,30. Tinha 35 anos. 

Seu primeiro destino, desterro em Ustica, na Sicília, Província de Palermo, ilha de oito quilômetros quadrados, 1600 habitantes, 500 ou 600 deles cumprindo pena por delitos comuns. Desterro compartilhado pelo ex-deputado reformista Giuseppe Sbaraglini, de Perugia, pelo também ex-deputado maximalista Paolo Conca, de Verona, dois companheiros dos Abruzos, e o seu mais intransigente adversário nas lutas internas do PCI, Amadeo Bordiga. Boa convivência entre todos eles, que na prisão as divergências diminuem. Gramsci lia muito. Os presos políticos enfrentavam as despesas com as dez liras diárias dadas pelo governo a título de auxílio. 

A experiência, relativamente suportável, durou pouco. No dia 20 de janeiro de 1927, 44 dias depois da chegada, Gramsci foi transferido para Milão, presídio de San Vittore, aonde chegou somente no dia 7 de fevereiro, após 19 dias de cansativa viagem, depois de passar por inúmeras prisões de trânsito. 

Esperava e o julgamento não saía. Foi durante essa espera que fez o registro célebre:

A minha posição moral é ótima: há quem me creia um Satanás, há quem me creia quase um santo. Eu não quero bancar nem o mártir nem o herói. Acredito que sou simplesmente um homem médio, que tem as suas convicções profundas e que não as troca por nada desse mundo...

Estava firme, pronto para enfrentar o julgamento. Minha prisão, dirá ele, é um episódio da luta política que se combatia e que continuará a se combater não só na Itália como em todo o mundo sem que se saiba por quanto tempo. Sabia, dirá, que isso podia acontecer, e que podia ocorrer até o pior, e o pior seria a morte. 

O judiciário não encontrava os caminhos certos para acusar os comunistas. Tinha convicções, faltavam provas. Gramsci era um “subversivo”, um indivíduo “perigoso para a ordem pública”, de ação “nefasta”, panfletarismo puro, mas provas mesmo, aquelas tão necessárias para subsidiar a acusação, nada. 

Fizeram de tudo: provocadores foram colocados na cela de Gramsci passando-se por pessoas que queriam ajudá-lo. Queriam a partir disso, forjar provas que sustentassem a acusação, e Gramsci não caiu em nenhuma das armadilhas. Provas, nada. Não conseguiam forjá-las, não obstante as tentativas. Mas, o fascismo não se incomoda com provas, não precisa de provas, sempre está munido de convicções, e estas lhe bastam. 

Deixou o presídio de San Vittore no dia 11 de maio de 1928, seguindo para Roma. Entrou na sala do Tribunal Especial para a Defesa do Estado, cuja liturgia não o impressionava. Era homem da cultura, sabia o que aquilo significava, conhecia dos símbolos e de sua utilização na política. Na sessão de 30 de maio, Gramsci é o primeiro interrogado. O general Alessandro Saporiti, presidente do Tribunal, lhe dirige a palavra:

-O senhor é acusado de atividade conspiratória, de instigação à guerra civil, de apologia de delito e de incitamento ao ódio de classe. O que o senhor tem algo a dizer ao seu favor?

Gramsci, até por suas precárias condições de saúde, falava baixinho, com um fio de voz, não obstante todos o ouvissem com muita atenção, e em silêncio, fazendo esforço para não perder nada do que dizia:

-Confirmo as minhas declarações feitas à polícia. Fui detido apesar de deputado em exercício. Sou comunista e a minha atividade política é conhecida por tê-la explicado publicamente como deputado e como articulista de l’Unità. Não desenvolvi nenhum tipo de atividade clandestina porque, mesmo se quisesse, isto seria impossível. Há anos que tenho sempre às costas seis agentes, com a função declarada de me acompanhar e de postar-se à minha porta. Assim, nunca me deixaram só e, sob o pretexto de proteção, foi exercitada sobre mim uma vigilância que torna-se hoje a minha melhor defesa. Peço que sejam ouvidos como testemunhas a depor sobre esta circunstância o questor e o representante do Estado de Turim. Se, por outro lado, ser comunista importa responsabilidade, o aceito. 

Dignidade, firmeza, serenidade.

O general prossegue:

-Entre os escritos encontrados com o senhor fala-se de guerra e de tomada do poder pelo proletariado. O que estes escritos significam:

-Creio, senhor general, que todas as ditaduras de tipo militar acabam, cedo ou tarde, sendo atingidas pela guerra. Parece-me evidente, nesse caso, que caiba ao proletariado substituir a classe dirigente tomando as rédeas do poder para mudar os destinos da Nação. 

A voz, um fio, como já se disse. 

O representante do Ministério Público o interpelava seguida e provocativamente, e isso o irritou muito, a ponto de alterar-se no final do interrogatório. Dirigiu-se aos juízes, esforçando-se por altear a voz:

-Vocês conduzirão a Itália à ruína e a nós, comunistas, caberá salvá-la. 

O Ministério Público usou da palavra dois dias antes da sentença. Seguiu vociferando. Desenvolveu uma violenta exposição de motivos pedindo a condenação dos réus, pouco se

lhe importavam as provas, que aquele era obviamente um Estado de exceção. Em relação a Gramsci, proferiu a frase famosa:

-Por 20 anos, devemos impedir que esse cérebro funcione. 

Terracini foi condenado a 22 anos, nove meses e cinco dias. Roveda e Scoccimarro, a 20 anos, quatro meses e cinco dias.

Para impedir que o cérebro de Gramsci funcionasse, como pedido pelo Ministério Público, o secretário-geral do PCI foi condenado aos 20 anos solicitados – mais precisamente, sempre duro descobrir a dosimetria dos juízes, 20 anos, quatro meses e cinco dias, mesma pena dada a Roveda e Scoccimarro. 

Com saúde ultradebilitada, sofrendo do Mal de Pott, corcunda, dores terríveis sempre, morreu na madrugada do dia 27 de abril de 1937, aos 46 anos, seis dias após a pena ter chegado ao fim, que ela havia sido reduzida. Sonhava em voltar a ver o pai, com 77 anos e doente, que o esperava ansiosamente na Sardenha. Não deu tempo. O velho Francesco não resistiu: morreu duas semanas depois. 

Uma coisa é certa: o Ministério Público foi derrotado, fragorosamente. O cérebro de Gramsci não foi paralisado. Ao contrário. Na prisão, escreveu uma obra para a eternidade, tornando-se um dos maiores marxistas da história, o maior teórico da Revolução no Ocidente. Seus “Cadernos do Cárcere”, como disse, como pretendia, como disse logo ao chegar à prisão, deixou de ser uma obra contingente, para tornar-se uma obra para todo o sempre. 

* Ver, para as informações desse texto, FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 365 p..

quarta-feira, outubro 11, 2017

Não à delação!


Sempre admirei os corajosos. Não aqueles que têm coragem para o confronto físico, ainda que em alguns casos também, mas especialmente os que ousam enfrentar os poderosos de qualquer tipo ou tamanho. O poder assusta, oprime e silencia. Sempre admirei os corajosos, detentores da coragem que eu tive em algum momento e fui perdendo acossado por meus fantasmas, inseguranças e cabelos brancos. Jovem adulto, fiquei fascinado com um verso de Vinicius de Moraes que falava de “coragem para comprometer-se sem necessidade”. Sempre admirei os que são capazes de comprometer-se contra a “necessidade”.
Sempre admirei os professores, esses heróis do cotidiano cujas lutas diárias aparentemente tão próximas e familiares são desconhecidas da maioria. Ser professor é lidar com dezenas de universos a cada sala de aula. Cada um desses universos é uma ilha de sonhos, imaginários, problemas, desejos, aflições, faltas, excessos, carências, explosões, incontinências, necessidades e expectativas. Cada professor precisa exercer a cada momento uma multiplicidade de papéis: intelectual, mestre, pai, mãe, psicólogo, conselheiro, enfermeiro, consultor, amigo, autoridade, guia, assistente social. Quem acha que ser professor é apenas ensinar conteúdo passa atestado de ignorância. Eu adoraria ver certos jornalistas e burocratas passando 25 anos em sala de aula. Seriam moídos em dois meses.
Um velho jornalista, que virou grande professor, contou que depois de duas horas na sua estreia em sala de aula foi ao diretor da instituição e pediu demissão. Diante do espantado chefe, disse:
– Já esgotei todo o meu conhecimento.
Lecionar é preparar, ministrar, atualizar-se, estudar constantemente, corrigir e sempre recomeçar. Falo disso por ter ficado sabendo, conversando com professores nas imediações do Mercado Público, de uma diretora destemida que teve coragem de responder altivamente aos poderosos da Secretaria de Educação de Porto Alegre. Telefonaram-lhe pedindo que informasse os nomes dos professores em greve na sua escola para que o ponto deles fosse cortado. Ela não atendeu. Mandou dizer que estava recebendo pais. Era verdade. Telefonaram novamente. A diretora não se intimidou. Soltou o verbo.
– Durante oito meses ninguém me telefonou para saber como eu estava fazendo para dar conta de tudo com três professores a menos e com tantas carências. Se vocês querem cortar pagamento, consultem o ponto eletrônico que nos foi imposto. Não contem comigo para fazer delação.
Sempre admirei os que não se dobram. Colocar nas costas dos professores os problemas das más gestões municipais e a incapacidade de fazer os mais aquinhoados contribuírem com mais para o bolo social é uma maldade calculada. Parabéns, diretora, cujo nome deve ser preservado para evitar represálias, pela dignidade. Dedico-lhe estes versos do Poetinha: “Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto/Esse eterno levantar-se depois de cada queda/Essa busca de equilíbrio no fio da navalha/Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo/Infantil de ter pequenas coragens”. Grande.JM

segunda-feira, outubro 09, 2017

Imagens!


Aos poucos, perco a fé na razão e só me socorro com imagens. Sabemos que as imagens são perigosas e chegaram a ser proibidas. Elas mexem com os sentidos, não com a crueza da objetividade. Vago. Não é todo dia que vemos desta grua duas rosas vermelhas sangrando a lua cortada por esta faca sobre a mesa com a sua virgindade azul-turquesa. Quantas vezes já se quebrou a moldura dessa vela acesa na chama da demência onde choram cavaleiros da inclemência para se invadir a solidão da pintura? Estrela esquiva do cavalo negro, ópio de cristais quase perfeitos, vagos jardins de céus rarefeitos. Tudo se reflete na parede da história, esse vasto painel da perdida memória molhando a terra com sangue de rosas. Rosas metálicas da lavra de um Mc Bangu.
Que é isso? Delírio? Devaneio? Loucura? Desamparo? Bebeu? Fumou? Cheirou? Tomei chá de cidreira. Faço isso todo dia. É incrível como o chá de cidreira me altera. É que estou a caminho da procura. Esse é o mais longo caminho, aquele que para muitos pode dar em nada. Há quem viva sem procurar e há quem procure sem viver. Quero viver e procurar ao mesmo tempo. Procurar a vida na vida, o tempo na sua passagem, a passagem no seu tempo, a chama que mantém aceso, a fleuma que controla o fogo, o abraço que sufoca o soluço e sacode o corpo de emoção e de silêncio. Tem momentos em que temo a cinza das horas e horas em que vejo a poeira se acumular como cinzas sobre o relógio da existência.
Escrevo e paro, consulto um site, salto para o celular, volto ao computador, estou inquieto. É que sinto a chegada de uma nuvem de imagens empurrada por um vento melancólico. Um homem grita: “Isso é arte?” Ele não pergunta, embora pergunte, afirma, mesmo que negue. Há ódio no seu olhar, que não se fixa, prefixa a sua obsessão. Confesso que não sei o que é ou não é arte. Apenas me contento em contemplar. Eu queria saber conversar para ouvir aqueles de quem discordo e também os que comigo não concordam. Seria um belo e paciente jogo de espera. Como não sei, trato de sair de jogo.
Mas é triste ver da arquibancada.
Penso em rosas vermelhas como quem cantarola uma antiga canção francesa escrita para entristecer: “Ne me quittes pas”. Nenhum pedido pode ser mais inútil. Em certo sentido, ele só pode ser feito quando nada pode mais ser desfeito. A única pergunta que interessa em 2017 é: pode existir felicidade num mundo sem transcendência? É a pergunta que Michel Houellebecq faz em todos os seus livros? É a pergunta que o filósofo Michel Onfray faz em um livro chamado “Houellebecq educador”. Ah, de novo esses franceses! Que medo é esse? Calma, não há perigo. Quantas imagens esquisitas nos surgem na mente a cada dia passado? Quantas metáforas são mortas antes mesmos de fazerem algum sentido?
O que diz uma imagem? Quantas palavras são necessárias para roçar a película de uma simples imagenzinha? Não são poucos os que seguem em frente sem pensar nessas bizarrices. Pensar dói. O problema é que nunca paramos de pensar mesmo quando temos déficit de pensamento. Em que pensamos? Eu, cada vez mais, no próprio pensamento. Por que meus pensamentos me arrastam para o passado? Por que quero ir numa direção e eles me levam para outra? Que contas temos para acertar? O pensamento é um tornado. Uma espiral de imagens emprestadas.
Quando sou levado pelo furacão pensamento, tudo devasto.
Assim: não é todo dia que vemos desta rosa duas gruas vermelhas sangrando a lua azul-turquesa cortada por esta faca com a sua virgindade sobre a mesa. Quantas vezes já se quebrou da inclemência a solidão da pintura para se invadir a moldura dessa vela acesa na chama da demência onde choram cavaleiros que não deviam estar na história? Estrela esquiva de equívocos cristais quase perfeitos, cavalo negro, ópio, vagos jardins de brancos céus rarefeitos. Tudo se reflete na parede da perdida memória da história, memória de rosas metálicas, esse vasto painel molhando a terra com sangue da lavra de um Mc Bangu.
Sim, eu penso assim numa vertigem de palavras-imagens. Estou a caminho do hospício? Provavelmente. É que não consigo mais manter os pés no chão, preencher formulários, cadastrar meu nome em contas da internet, controlar o meu salário, lembrar as 36 senhas que me abrem portas virtuais, curar minha distensão, cumprir todos os horários, sorrir para o desconhecido que me faz caretas na rua, separar o joio do trigo, pagar meus impostos em dia, aguardar a reforma da aposentadoria, torcer para o Inter voltar logo à primeira divisão, abrir o portão antes do medo, controlar as placas dos carros dos aplicativos, cujas marcas sempre desconheço, fazer ecografias disto e daquilo, podar a barba todas as manhãs, cortar as unhas dos pés, essas coisas todas que debitamos na conta dos fundos perdidos do cotidiano.
Então, em fuga, produzo imagens, palavras, imagens-palavras que me libertam: estrela esquiva, cristais quase perfeitos, cavalo de ópio, vagos negros jardins de brancos céus rarefeitos refletidos na parede da história, perdida memória de rosas metálicas, vasto painel molhando a terra com sangue de cronistas tão loucos quanto os poetas.
 *
Do que tenho saudade?

      Tenho recordações tão vivas de lugares por onde passei: uma tarde e uma noite em Paros, na Grécia, sentindo cheiro de figos maduros, certa temporada em Berlim vendo filmes no festival em meio ao inverno gelado, temporada da qual ainda tenho nas narinas o aroma do café numa estação de metrô, uma noite em Nova York conversando com um historiador sobre a traição dos farrapos aos negros em Porongos, uma semana na África do Sul saindo de madrugada para acompanhar o alvorecer junto aos leões e aos elefantes, vários anos em Paris frequentando o Louvre uma vez por mês e aprendendo nas ruas as nuanças do idioma francês, uma noite em Ouarzazate, no Marrocos, quando me senti tão pequeno diante da imensidão do deserto e comecei a tremer.
Tenho sentimentos tão vastos e melancólicos encravados nas ravinas do coração por lugares que mexeram dolorosamente comigo sem que jamais eu questionasse as razões das emoções que me consumiram como uma vela na solidão de minhas ruínas então ignoradas: Quelimane, em Moçambique, bela e pobre cidade debruçada sobre o majestoso e plácido rio dos Bons Sinais, um dos portos de exportação de escravos para a América, onde me senti tão impotente face às misérias do mundo e tão exultante pela alegria das pessoas que me sorriam simplesmente por eu estar ali, Macchu Picchu, nas alturas mágicas do Peru, onde estive o mais perto possível de uma experiência mística, um passeio pelas ruas de Havana nas pegadas imaginárias de Ernest Hemingway.
Tenho no meu espírito as marcas de uma passagem pelo México, quando me impressionei com a cultura asteca tão forte e tão soterrada pela uniformização global, as brasas vivas das tantas vezes que li Borges em livrarias de Buenos Aires, os textos que escrevi viajando como correspondente de jornal na Europa, o dia em que me sentei numa praça em Montevidéu para ler “La carreta”, um clássico da literatura pampiana, e não vi a chuva chegar lavando as páginas, um final de semana em Lisboa ouvindo fado e lendo as ideias patafísicas de meu amigo Jean Baudrillard, uma caminhada pelas ruas de Pequim indo do pós-moderno ao quase medieval, um passeio pela Toscana, a emoção que senti diante de um quadro em Toledo, na Espanha, as vertigens do sol.
Tenho lembranças de tudo isso que se perdeu, de tudo isso que se reacende quando menos eu espero aspergindo na memória clarões alaranjados de por do sol, tenho cicatrizes dessas travessias, sequelas, mapas, fotografias, álbuns, maresias, feridas, memórias, recantos, desvãos, brisas, perfumes, gostos variados na boca, lágrimas que ainda escorrem, odores que não se movem, poemas, clamores, romances, imagens, cenas, recordações, bilhetes, livros, sensações, tremores, acordes, cartões de visita, beijos, seixos, abraços, melodias, cartões postais, tenho tudo dessas paragens, mas só tenho saudades – o mais profundo, doce e amargo sentimento de falta – de duas coisas: as estrelas coalhando o céu do verão e o nascer do dia em Palomas, terra da minha eterna infância e certamente do meu repouso.JM

quarta-feira, outubro 04, 2017

Morte da obra


Eu sou um implicante. Faz parte do meu DNA. Muitos me veem como ressentido. Não deixa de ser verdade. Mas é mentira. Paradoxo. Já defendi o direito ao ressentimento. Nos anos 1960, cheios de verve e de fórmulas, os franceses inventaram a morte do autor. Era uma história interessante sobre a autonomia da obra em relação ao seu autor e também sobre a originalidade da escrita. O autor da morte do autor, ou assassino, foi Roland Barthes, uma vaca sagrada da época.
Ele disse: A escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve”. Tradução: o autor copia, transforma, reforma e conforma. Colocado o ponto final, a obra vive, o autor morre. Barthes disparou mais uma bala: “Sem dúvida que foi sempre assim: desde o momento em que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, quer dizer, finalmente fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa”.
Bonita conversa. Muito cabeça. Não é mais assim.
Leio os jornais e vejo os programas de entrevistas. Só aparecem autores sem obras. O autor vive. A obra morreu ou nunca existiu. Não citarei nomes para não mexer com mortos-vivos. Direi apenas que uns 90% dos autores em voga não têm obra. Muito menos significativa. No máximo, colocou-se o nome na capa de algum material impresso para vender em palestras. O jornalismo se ilude com a espuma das coisas e constantemente inverte hierarquias. Como disse Pierre Bourdieu, jornalistas tomam o banal por extraordinário e extraordinário por banal. É um problema de óculos.
Barthes queria dissipar ilusões: “Supõe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relação de antecedência que um pai mantém com o seu filho”. Se não era assim quando escreveu, menos ainda agora. Nestes tempos de morte da obra, o autor não alimenta a criatura, que vem depois dele. Não sofre por ela, não vive com ela, não a ama, não a trata como um pai. Aproveita-se dela. A obra é apenas uma simulação, um produto derivado, um complemento, um suplemento, um plus. Quem tem obra no Brasil? Raríssimos. Em geral, fora da mídia. Um caso típico de autor sem obra é o dos palestrantes profissionais que faturam alto chupando citações dos gregos e vendendo autoajuda intelectual em eventos corporativos. Darcy Ribeiro tinha obra.
Roberto DaMatta tem obra.
Obra implica originalidade mesmo quando se transforma o que já foi publicado.
O francês Thomas Piketty, que esteve no Brasil na semana passada, tem obra.
Gilles Lipovetsky, que tem obra, contra Eduardo Gianetti da Fonseca (cite uma obra sem olhar no google). A mídia deu vitória ao brasileiro.
A obra sempre perde. Não fala a linguagem do espetáculo.
Viva o autor. A obra morreu. Só incomodava.  Exigia leitura.(JM).

Crise na universidade

UnB deve fechar o ano com deficit de R$ 105 milhões

Por enquanto, uma possível suspensão das aulas está fora de questão, mas há o risco de a universidade não pagar fornecedores ou prestadores de serviço e até demitir mais terceirizados.

terça-feira, outubro 03, 2017

O caos de cada dia!


 Eu não tenho mais jeito. Quanto mais o tempo passa, mais me sinto solidário com os perdedores mais comuns. Olho a situação do Brasil e lamento: o país sofreu um golpe e hoje é controlado por um presidente com 3% de aprovação popular e um grupo chamado pelo então procurador-geral da República, em sua denúncia, de “quadrilhão”. Mas a Câmara dos Deputados, comprada a peso de gordas emendas, vai fingir mais uma vez que nada há a investigar. A transparência pode esperar. Olho a situação do Rio Grande do Sul e me enterneço com o horror vivido pelo funcionalismo: quase um governo inteiro recebendo parcelado. Os professores estaduais estão em greve. Que mais poderiam fazer? Aplaudir as isenções fiscais e os discursos de austeridade?
Olho a situação de Porto Alegre e me preocupo: o funcionalismo vai entrar em greve. Que mais poderia fazer? Foi eleito como bode expiatório. O IPTU está defasado? Os mais ricos não querem correção. O governo pretendia aprovar uma medida de justiça tributária? Cheguei a achar que sim. Mas não havia lugar para a justa progressividade. Era mais um aumento disfarçado concentrado na classe média. Por que clubes de futebol como Grêmio e Internacional não pagam IPTU? Para sobrar mais dinheiro destinado a salários milionários de jogadores privilegiados? Privatização do dinheiro público. O IPTU não pago acaba no bolso dos “craques”? O clubismo tudo justifica. Até o absurdo.
Há sempre uma suposta boa razão para isentar os ricos de pagar impostos. Nós do rodapé da tabela é que pagamos tudo. Afinal, nossa única contribuição para a sociedade é o trabalho que fazemos. Nosso suor, nosso sangue e nossa mão de obra não nos dão direito a vantagens. Não fazemos gols, não criamos empregos (Lírio Parisotto recebeu uns R$ 400 milhões de isenção fiscal para criar cinco postos de trabalho), não fornecemos mitos nem ídolos. Apenas trabalhamos todos os dias. É muito pouco. Alguns de nós, ingênuos, passam em concursos e dedicam a vida a ensinar ou a garantir segurança a todos. Recebem salários mínimos, mas se consolam acreditando que assinaram um contrato que será obrigatoriamente cumprido pelo ente público. Aí descobrem que a qualquer momento tudo pode mudar. Menos para os ricos.
Queremos que os professores e a polícia trabalhem mais e melhor recebendo menos ou parcelado. Governantes dão de ombros: não há dinheiro. Nunca a polarização foi tão grande. Ela corresponde a duas visões de mundo. Uma quer privatizar tudo. A outra ainda acredita na importância do serviço público, que sempre precisa se aperfeiçoar. Numa visão, tudo é mercadoria. Na outra, há coisas que devem ser garantidas universalmente pelo Estado. O alinhamento da chama, quase apagada, Brasil-Rio Grande do Sul-Porto Alegre (o PSDB é um PMDB com gel no cabelo), está marcando época, a era do parcelamento eterno. JM

domingo, outubro 01, 2017

Outubro rosa:câncer de mama atinge mulheres jovens


Campanha alerta para a necessidade do diagnóstico precoce da doença na luta pela cura: mamografias e autoexames devem fazer parte da rotina feminina.

Brasil, grande Suécia?


Sou louco pela Suécia. Doido de atar. Não passa um mês sem que eu fale da Suécia em palestras ou na frente do espelho. Sonho que o Brasil se transforme numa grande Suécia. Uma Suécia tropical misturando funk, samba, bossa nova e algo mais. Sertanejo universitário não precisa. Os suecos achariam primário. A Suécia é a minha tara. País mais democrático e menos desigual do mundo. O rei reina, mas não governa e não faz escândalos como a monarquia inglesa. Não há controle de constitucionalidade. Nem auxílio-moradia para juiz.
Podemos vir a ser uma grande Suécia? Muita gente acha que não e culpa o clima. Igualdade e democracia não combinariam com o calor. É um preconceito típico de quem ganha muito sem suar a camisa. A Suécia tem dez milhões de habitantes e um parlamento com 349 membros. Proporcionalmente o nosso não é grande como dizem. Apenas incompetente e voraz. A Suécia tem uma economia mista fortemente baseada na exportação de produtos industrializados. Alia como poucos a cultura empresarial e a participação do Estado na vida das pessoas. Adoro este dado: o sueco, descontados todos os impostos, embolsa 40% do valor nominal bruto dos seus ganhos. Não é bonito, instrutivo, edificante?
Quarta economia mais competitiva do mundo, a alta carga tributária não gera um “custo Suécia”. Embora existam escolas públicas e privadas, a educação é gratuita. Assim como o material escolar, a alimentação e o transporte dos estudantes. Há déficit de professores na Suécia. Culpa do salário mensal baixo: em torno de R$ 13 mil. A solução tem sido diminuir a carga horária docente e aumentar a remuneração. Com um dos melhores rendimentos escolares do planeta, a Suécia só faz avaliações com notas a partir da sexta série. Até esse patamar nada de reprovação. Estuda-se remeter a avaliação para mais tarde ainda de maneira a diminuir a pressão sobre os alunos. O dever de casa é considerado anacrônico, ineficiente e está em extinção.
Um dos pontos mais importantes da educação na Suécia atualmente é a questão de gênero. Procura-se abolir o tratamento por ele e ela. Há um pronome neutro para designar meninos e meninas e banheiros unissex. Que país maluco. Investe quase 8% do seu PIB na formação das crianças e jovens. Cada cidade compromete 42% do seu orçamento com educação. A Suécia proibiu legalmente a palmada em 1979. Tudo lá é tedioso. Pouca violência, quase sem polícia na rua, prisões vazias, jornalismo policial sensacionalista não tem audiência nem razão de ser. Lixeiro casa como médico e os dois têm salários quase iguais.
O Brasil pode vir a ser uma grande Suécia? Dificilmente. Por causa do clima? Claro que não. Por causa da elite brasileira escravocrata. Ela não deixa. Não quer. Gosta de viver perigosamente. Prefere morar em fortalezas e circular em carro blindado a dividir o bolo de modo igualitário. A prioridade dos suecos é a justiça social. A das elites brasileiras é a política de segurança pública. Leia-se, repressão. Traído por sua burguesia, antiprogressista, o Brasil busca no atraso o seu futuro. O custo Brasil tem nome: conservadorismo.JM