Aos poucos, perco a fé na razão e só me socorro com imagens. Sabemos que as imagens são perigosas e chegaram a ser proibidas. Elas mexem com os sentidos, não com a crueza da objetividade. Vago. Não é todo dia que vemos desta grua duas rosas vermelhas sangrando a lua cortada por esta faca sobre a mesa com a sua virgindade azul-turquesa. Quantas vezes já se quebrou a moldura dessa vela acesa na chama da demência onde choram cavaleiros da inclemência para se invadir a solidão da pintura? Estrela esquiva do cavalo negro, ópio de cristais quase perfeitos, vagos jardins de céus rarefeitos. Tudo se reflete na parede da história, esse vasto painel da perdida memória molhando a terra com sangue de rosas. Rosas metálicas da lavra de um Mc Bangu.
Que é isso? Delírio? Devaneio? Loucura? Desamparo? Bebeu? Fumou? Cheirou? Tomei chá de cidreira. Faço isso todo dia. É incrível como o chá de cidreira me altera. É que estou a caminho da procura. Esse é o mais longo caminho, aquele que para muitos pode dar em nada. Há quem viva sem procurar e há quem procure sem viver. Quero viver e procurar ao mesmo tempo. Procurar a vida na vida, o tempo na sua passagem, a passagem no seu tempo, a chama que mantém aceso, a fleuma que controla o fogo, o abraço que sufoca o soluço e sacode o corpo de emoção e de silêncio. Tem momentos em que temo a cinza das horas e horas em que vejo a poeira se acumular como cinzas sobre o relógio da existência.
Escrevo e paro, consulto um site, salto para o celular, volto ao computador, estou inquieto. É que sinto a chegada de uma nuvem de imagens empurrada por um vento melancólico. Um homem grita: “Isso é arte?” Ele não pergunta, embora pergunte, afirma, mesmo que negue. Há ódio no seu olhar, que não se fixa, prefixa a sua obsessão. Confesso que não sei o que é ou não é arte. Apenas me contento em contemplar. Eu queria saber conversar para ouvir aqueles de quem discordo e também os que comigo não concordam. Seria um belo e paciente jogo de espera. Como não sei, trato de sair de jogo.
Mas é triste ver da arquibancada.
Penso em rosas vermelhas como quem cantarola uma antiga canção francesa escrita para entristecer: “Ne me quittes pas”. Nenhum pedido pode ser mais inútil. Em certo sentido, ele só pode ser feito quando nada pode mais ser desfeito. A única pergunta que interessa em 2017 é: pode existir felicidade num mundo sem transcendência? É a pergunta que Michel Houellebecq faz em todos os seus livros? É a pergunta que o filósofo Michel Onfray faz em um livro chamado “Houellebecq educador”. Ah, de novo esses franceses! Que medo é esse? Calma, não há perigo. Quantas imagens esquisitas nos surgem na mente a cada dia passado? Quantas metáforas são mortas antes mesmos de fazerem algum sentido?
O que diz uma imagem? Quantas palavras são necessárias para roçar a película de uma simples imagenzinha? Não são poucos os que seguem em frente sem pensar nessas bizarrices. Pensar dói. O problema é que nunca paramos de pensar mesmo quando temos déficit de pensamento. Em que pensamos? Eu, cada vez mais, no próprio pensamento. Por que meus pensamentos me arrastam para o passado? Por que quero ir numa direção e eles me levam para outra? Que contas temos para acertar? O pensamento é um tornado. Uma espiral de imagens emprestadas.
Quando sou levado pelo furacão pensamento, tudo devasto.
Assim: não é todo dia que vemos desta rosa duas gruas vermelhas sangrando a lua azul-turquesa cortada por esta faca com a sua virgindade sobre a mesa. Quantas vezes já se quebrou da inclemência a solidão da pintura para se invadir a moldura dessa vela acesa na chama da demência onde choram cavaleiros que não deviam estar na história? Estrela esquiva de equívocos cristais quase perfeitos, cavalo negro, ópio, vagos jardins de brancos céus rarefeitos. Tudo se reflete na parede da perdida memória da história, memória de rosas metálicas, esse vasto painel molhando a terra com sangue da lavra de um Mc Bangu.
Sim, eu penso assim numa vertigem de palavras-imagens. Estou a caminho do hospício? Provavelmente. É que não consigo mais manter os pés no chão, preencher formulários, cadastrar meu nome em contas da internet, controlar o meu salário, lembrar as 36 senhas que me abrem portas virtuais, curar minha distensão, cumprir todos os horários, sorrir para o desconhecido que me faz caretas na rua, separar o joio do trigo, pagar meus impostos em dia, aguardar a reforma da aposentadoria, torcer para o Inter voltar logo à primeira divisão, abrir o portão antes do medo, controlar as placas dos carros dos aplicativos, cujas marcas sempre desconheço, fazer ecografias disto e daquilo, podar a barba todas as manhãs, cortar as unhas dos pés, essas coisas todas que debitamos na conta dos fundos perdidos do cotidiano.
Então, em fuga, produzo imagens, palavras, imagens-palavras que me libertam: estrela esquiva, cristais quase perfeitos, cavalo de ópio, vagos negros jardins de brancos céus rarefeitos refletidos na parede da história, perdida memória de rosas metálicas, vasto painel molhando a terra com sangue de cronistas tão loucos quanto os poetas.
*
Do que tenho saudade?
Tenho recordações tão vivas de lugares por onde passei: uma tarde e uma noite em Paros, na Grécia, sentindo cheiro de figos maduros, certa temporada em Berlim vendo filmes no festival em meio ao inverno gelado, temporada da qual ainda tenho nas narinas o aroma do café numa estação de metrô, uma noite em Nova York conversando com um historiador sobre a traição dos farrapos aos negros em Porongos, uma semana na África do Sul saindo de madrugada para acompanhar o alvorecer junto aos leões e aos elefantes, vários anos em Paris frequentando o Louvre uma vez por mês e aprendendo nas ruas as nuanças do idioma francês, uma noite em Ouarzazate, no Marrocos, quando me senti tão pequeno diante da imensidão do deserto e comecei a tremer.
Tenho sentimentos tão vastos e melancólicos encravados nas ravinas do coração por lugares que mexeram dolorosamente comigo sem que jamais eu questionasse as razões das emoções que me consumiram como uma vela na solidão de minhas ruínas então ignoradas: Quelimane, em Moçambique, bela e pobre cidade debruçada sobre o majestoso e plácido rio dos Bons Sinais, um dos portos de exportação de escravos para a América, onde me senti tão impotente face às misérias do mundo e tão exultante pela alegria das pessoas que me sorriam simplesmente por eu estar ali, Macchu Picchu, nas alturas mágicas do Peru, onde estive o mais perto possível de uma experiência mística, um passeio pelas ruas de Havana nas pegadas imaginárias de Ernest Hemingway.
Tenho no meu espírito as marcas de uma passagem pelo México, quando me impressionei com a cultura asteca tão forte e tão soterrada pela uniformização global, as brasas vivas das tantas vezes que li Borges em livrarias de Buenos Aires, os textos que escrevi viajando como correspondente de jornal na Europa, o dia em que me sentei numa praça em Montevidéu para ler “La carreta”, um clássico da literatura pampiana, e não vi a chuva chegar lavando as páginas, um final de semana em Lisboa ouvindo fado e lendo as ideias patafísicas de meu amigo Jean Baudrillard, uma caminhada pelas ruas de Pequim indo do pós-moderno ao quase medieval, um passeio pela Toscana, a emoção que senti diante de um quadro em Toledo, na Espanha, as vertigens do sol.
Tenho lembranças de tudo isso que se perdeu, de tudo isso que se reacende quando menos eu espero aspergindo na memória clarões alaranjados de por do sol, tenho cicatrizes dessas travessias, sequelas, mapas, fotografias, álbuns, maresias, feridas, memórias, recantos, desvãos, brisas, perfumes, gostos variados na boca, lágrimas que ainda escorrem, odores que não se movem, poemas, clamores, romances, imagens, cenas, recordações, bilhetes, livros, sensações, tremores, acordes, cartões de visita, beijos, seixos, abraços, melodias, cartões postais, tenho tudo dessas paragens, mas só tenho saudades – o mais profundo, doce e amargo sentimento de falta – de duas coisas: as estrelas coalhando o céu do verão e o nascer do dia em Palomas, terra da minha eterna infância e certamente do meu repouso.JM