“Nós somos os homens ocos/Os homens empalhados/Uns nos outros amparados/O elmo cheio de nada”. É isso que de fato somos? Volto a esse assunto do famoso poema de T.S. Eliot. A Terra é a nossa casa. O que estamos fazendo com ela? O Brasil é nosso lar.
O que estamos fazendo com ele?
Michel Temer é um personagem que me parece caber inteiro nessa definição, homem oco, empalhado, o elmo cheio de nada. Não digo isso por uma rejeição ideológica rasteira.
Acontece que ele encarna a caricatura do pior que nos acostumamos a conhecer: a mão que se movimenta freneticamente enquanto ele fala e que termina cada frase sentenciosa com o dedo indicador em riste estripando adversários, a linguagem bacharelesca, a mesóclise pedante, o botox repuxando a face.
Eis, talvez, o problema. Nossos políticos não lembram pessoas de verdade, autênticas, reais, defensáveis, complexas. Lembram bonecos em cena. Como representante mais acabado dessa caricatura, Temer teria de chegar ao topo da carreira. Tivemos políticos odiosos no passado. O escritor José de Alencar foi um deles. Escreveu, como mostrei em “Raízes do conservadorismo brasileiro”, esta análise abominável sobre a escravidão: “Os filantropos abolicionistas, elevados pela utopia, não sabem explicar este acontecimento. Vendo a escravidão por um prisma odioso, recusando-lhe uma ação benéfica no desenvolvimento humano, obstinam-se em atribuir exclusivamente às más paixões humanas, à cobiça e indolência o efeito de uma causa superior”.
Um crápula.
Eram os valores da época? Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Castro Alves e tantos outros conheceram a mesma época. Alencar perguntava retoricamente ao Imperador: “É a escravidão um princípio exausto, que produziu todos os seus bons efeitos e tornou-se, portanto, um abuso, um luxo de iniquidade e opressão?” Ele mesmo respondia para sua desonra: “Nego, senhor, e o nego com a consciência do homem justo, que venera a liberdade; com a caridade do cristão, que ama seu semelhante e sofre na pessoa dele. Afirmo que o bem de ambas, da que domina como da que serve, e desta principalmente, clama pela manutenção de um princípio que não representa somente a ordem social e o patrimônio da nação; mas sobretudo encerra a mais sã doutrina do evangelho”.
A retórica de Joaquim Nabuco era bem outra: “A escravidão não é um contrato de locação de serviços que imponha ao que se obrigou certo número de deveres definidos para com o locatário. É a posse, o domínio, o sequestro de um homem – corpo, inteligência, forças, movimentos, atividade – e só acaba com a morte. Como se há de definir juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou o que este não pode, contra o senhor? Em regra o senhor pode tudo. Se quiser ter o escravo fechado perpetuamente dentro de casa, pode fazê-lo; se quiser privá-lo de formar família, pode fazê-lo; se, tendo ele mulher e filhos, quiser que eles não se vejam e não se falem, se quiser mandar que o filho açoite a mãe, apropriar-se da filha para fins imorais, pode fazê-lo. Imaginem-se todas as mais extraordinárias perseguições que um homem pode exercer contra outro, sem o matar, sem separá-lo por venda de sua mulher e filhos menores de quinze anos – e ter-se-á o que legalmente é a escravidão entre nós. A Casa de Correção é, ao lado desse outro estado, um paraíso”. A morte também parecia mais leve.
Eram ousados os abolicionistas. Antônio Bento, o carola que organizou fugas em massa de escravos e fundou o mais radical dos jornais engajados na luta pela abolição, não perdoava desvios de conduta. “A Redempção” era um chicote: “Empregado público, dependente por sua natureza, do governo, jamais devia ser redator de jornais e, senão, leiam as Notas Diárias do Diário Mercantil e verão que aquela seção é sempre um turibulo fumegante a todos os presidentes, chefes de polícia et religua. Para que meter-se a escrever em jornais quem não tem a independência precisa? Quando o homem tem habilitação para escrever, mas não pode fazê-lo com independência e arrisca a pena, vai fazer versos porque isso a ninguém ofende. O autor das Notas diárias se tivesse um olho de menos poderia ser um grande Camões, mas como tem os dois perfeitos, seja um João de Deus”. Havia tutano nos seus elmos.
Como estamos agora? Homens ocos, empalhados, elmos vazios? O passado tem muito a nos ensinar. Em 13 de maio de 1898, dez anos depois da abolição, um escriba cravou: “Se sob o Império definhava o regime da escravidão, na República tem a nossa pátria agonizado nos braços de maus governos. Em cada Estado existe um cacique que governa à sua vontade e perpetua-se no poder por si e por gentes da sua tribo e força é suportar, não há para onde apelar. E o povo humilde e paciente tudo suporta, até a miséria, com evangélica resignação”. Ainda não nos livramos dos caciques de cabeça oca. Até quando? Precisamos nos apressar para salvar a casa da venda dos móveis. Vende-se o fogão para pagar o almoço. A janta era só um luxo do passado.JM
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