Convite para a entrevista.
On-Line – Quando e porque a senhora veio para o Brasil?
Marianne Spiller – Desde a minha infância na Suíça, me preocupei com as populações pobres. Em 1972, decidi deixar meu país para conhecer melhor essa situação no mundo. Eu tinha professores muito competentes, como o religioso francês Abbé Pièrre e Dom Helder Câmara, arcebispo brasileiro, que divulgou no mundo inteiro que “a pobreza é um escândalo”. Estes dois homens me indicaram o Brasil. On-Line – Como surgiu essa sua relação e interesse por povos na condição de pobreza? Marianne Spiller – São coisas impossíveis de explicar. Eu já nasci com isso. É uma espécie de destino, uma vocação. On-Line – No início seu trabalho era diretamente com crianças e jovens que estavam envolvidos com as drogas. Você pode nos contar um pouco da história da Associação Brasileira de Amparo à Infância? Marianne Spiller – Em 1979, a Associação Brasileira de Amparo à Infância foi fundada no Brasil por um grupo de amigos brasileiros e suíços. A maioria conhecia bem o Brasil e queria contribuir com a redução da pobreza. Com fé e coragem, começamos no ano de 1981, na área rural no sul de Curitiba, com uma creche para crianças de famílias pobres. Hoje você está voltada para a questão da água. Porque começou a se preocupar com esse tema? Marianne Spiller – Descobri que não se pode apoiar a libertação dos pobres sem se preocupar com a situação dos recursos naturais. Os pobres são os primeiros que sofrem, de maneira intensa, com as consequências da destruição e privatização dos recursos naturais pelas grandes empresas transnacionais. Comecei me preocupando com a atuação da Nestlé, que tem origem na Suíça, e entrei neste assunto me tornando uma ativista contra a privatização da água, contra o agronegócio. É eticamente condenável que a água, que deve ser um direito para todos os seres, seja usada como negócio, para a ganância de poucos. On-Line – Você esteve com Dom Cappio, certo? Qual a situação, neste momento, do povo que vive do Rio São Francisco? Marianne Spiller – Viajei várias vezes para aquela região e vi como este rio está morrendo. A transposição, ou seja, retirada de mais água deste rio, é um problema muito grande para a população ribeirinha, para as comunidades indígenas e para a natureza. A construção de grandes canais traz destruição para os biomas da catinga, do cerrado e para as comunidades indígenas. On-Line – O que representa o fato de a ONU ter considerado a água esta semana como um direito do ser humano? Marianne Spiller – Em março do ano passado, participei do 5º Fórum Mundial das Águas, que ocorreu em Istambul, na Turquia. O evento foi organizado pelo Conselho Mundial da Água, criado pelas grandes empresas transnacionais, que trabalham com o hidronegócio, algo que dá muito dinheiro. Inclusive, amigos meus na Alemanha estão trabalhando na conclusão de um filme chamado “A água faz dinheiro”. Vi como as delegações sul-americanas, coordenadas por Bolívia e Uruguai, tentavam pressionar o Fórum para que o acesso à água fosse considerado um direito humano. Mas o Fórum não aceitou isso. A declaração final afirmava que o acesso à água é uma necessidade básica, mas não um direito humano. Houve uma declaração alternativa, assinada por alguns países, como Bolívia Uruguai e Cuba. Entre março de 2009 e o que ocorreu ontem na ONU, foi um grande passo, uma vitória impulsionada por ONGs e forças da sociedade civil de alguns país. O curioso é que o país que mais lutou para isso foi o mais pobre da América Latina: a Bolívia. Parece que são os pobres que estão libertando a natureza da ganância e que têm a força da verdade. Enquanto as transnacionais e todos que destroem a natureza trabalham com a mentira. On-Line – Que avaliação a senhora faz da Conferência Mundial dos Povos sobre as mudanças climáticas e pelos direitos da “Madre Tierra”? Marianne Spiller – Foi simplesmente fantástico. Eram esperadas entre cinco e dez mil pessoas, mas compareceram 35 mil. No dia 22 de abril, Dia da Madre Terra, parecia que Cochabamba era o centro do mundo, tomado pelo entusiasmo. Em todos os lugares podia-se ver cartazes com a frase: “A Terra não pertence ao homem. O homem pertence à Terra.” Isso é um claro paradigma de origem indígena, muito diferente. É o conceito de que o homem não é o dono da natureza, mas uma parte dela. Penso que o antropocentrismo é o mal que está na raiz deste capitalismo destruidor, no qual o homem se sente no direito de destruir a natureza. On-Line – Você afirmou logo após o evento que a conferência foi um momento de descoberta de uma cultura originária que não conhecíamos. Que cultura era essa? Marianne Spiller – Os povos originários da Bolívia e Equador têm um conceito muito diferente da Pátria Mãe, eles têm uma relação de amor à Mãe Terra. O discurso mais radical foi de um chanceler que disse “que, no capitalismo o mais importante é o dinheiro, para o socialismo é o homem. Para nós, povos originários indígenas, o mais importante são as montanhas, as florestas, os rios. O homem vem depois”. Isso é muito interessante e traz uma visão totalmente diferente. O futuro tem de ir para esse lado. Evo Morales disse que “no século passado lutamos muito pelos direitos do homem, dos negros, dos homossexuais, das mulheres, das crianças, e de todos os povos marginalizados.” Este século, entretanto, será da Mãe Terra. Se não aumentarmos o respeito à natureza não haverá um futuro bom. On-Line – A ideia do “viver bem” poderia ser implementada em toda a América Latina? Marianne Spiller – Com certeza, em todo o mundo. Viver bem não quer dizer viver melhor. A mola mestra deste capitalismo destruidor é a concorrência. Você precisa ser melhor que o outro. O viver bem é diferente, é comunitário, é uma construção coletiva da realidade. Há também valores, como os que estão na nova Constituição da Bolívia, como “não mentir”. É algo tão simples, mas de suma importância, pois muita coisa em nossa sociedade se baseia na mentira. Outro valor na Constituição é “não ser preguiçoso”. O mais importante é não cair na ganância de ter mais e mais, mas sim de ser feliz com uma vida simples e com o suficiente. Se todos quiserem tudo, precisaremos ter vários planetas. On-Line – Como a senhora vê a situação dos rios no Brasil a partir das propostas levantadas pelos candidatos à presidência? Marianne Spiller – O Brasil está na direção de uma ação destruidora, isso fica evidente quando observamos Belo Monte e a epidemia de hidrelétricas que começaram a ser pensadas ainda na ditadura. Tudo isso é uma violência para os rios e cria muitos problemas transfronteiriços. As hidrelétricas do Rio Madeira, por exemplo, cria problemas para a Bolívia, pois os peixes não conseguem fazer a Piracema. Um candidato pensa um pouco mais no lado ecológico do que o outro, mas a grande direção não é favorável à preservação da natureza. O Brasil está na contramão da história.On-Line – Está na contramão também em relação à pobreza? Marianne Spiller – Durante estes anos houve mudanças muito grandes na relação do Estado junto à pobreza, que entrou, pela primeira vez, nas preocupações governamentais. Ninguém pode tirar esse mérito do governo do presidente Lula. Esses programas do Governo Federal são um grande avanço. Só o fato de ter registrado a existência de quase todas as famílias pobres do Brasil já é uma grande evolução, mas precisamos de mudanças mais profundas. Precisamos de urgência de reforma agrária uma e redução das propriedades agrícolas. Mas a preocupação social ainda é maior que a ambiental.