sábado, dezembro 31, 2011

Direito e Literatura

Um homem vai viajar a trabalho e deixa sua jovem esposa em casa pintando as paredes de verde. Quatro dias depois ele retorna e não encontra a mulher em casa. Na secretária eletrônica escuta o recado de um homem com voz misteriosa dizendo que sua esposa, Agostina, encontra-se no quarto de um hotel 5 estrelas colombiano. Ao chegar ao hotel, o marido, Aguilar, a encontra em estado de surto, agarrada aos pés da cabeceira, perto da cama.Essa história faz parte do livro Delírio, da escritora reconhecida internacionalmente e traduzida em mais de 12 idiomas, Laura Restrepo. Delírio foi o tema do programa Direito e Literatura: do fato à ficção, apresentado pelo procurador de justiça no Rio Grande do Sul e professor da Unisinos Lênio Streck e que passará a ser divulgado semanalmente na mídia. Cada edição é dedicada à reflexão sobre uma obra literária, comentada por intelectuais convidados. Para falar sobre o livro Delírio participaram a professora e doutora em Direito da Unisinos, Angela de Silveira Espíndola e a professora de letras da UFRGS, Janaína Valadão.O livro inteiro é uma tentativa de Aguilar de descobrir o que aconteceu com sua jovem esposa, o que a levou a chegar a tal estado de loucura e surto. A obra acaba indo além, mesclando-se com a própria realidade da Colômbia dos anos 80, da época de Pablo Escobar.Janaína Valadão explica o complexo papel de Escobar na sociedade colombiana, que além de ícone do narcotráfico mundial, era tido como uma figura mitológica. Existia toda uma aura de sacralidade ao redor de sua imagem. Era conhecido por ajudar os pobres, construiu estádios, alguns, inclusive, tem até sua foto. Nesse sentido que a obra traça um paralelo com a esquizofrenia. Como um traficante pode ser também exemplo de boas ações? O estado virando a barbárie. Seria esse o delírio de toda uma nação e não apenas o de Agostina? No livro, pouco antes de surtar, Agostina descobre que sua família, que pertence à classe abastada colombiana, tem ligação com o narcotráfico, e que inclusive, um de seus ex-namorados é muito próximo ao traficante mor. Delírio, segundo a especialista em Direito, faz uma metáfora com a própria sociedade contemporânea, no sentido de questionar até que ponto o nosso Direito também não tem sintomas delirantes e o sujeito do Direito não vive uma certa esquizofrenia.A narrativa conta que Agostina desde criança tem premonições, o que de certa forma representa o lado supersticioso da cultura popular colombiana, bem como demonstrado na obra de Gabriel Garcia Marquez.O próprio nome Agostina é um anagrama da palavra angústia. Angústia contemporânea, angústia da sociedade, do passado, do presente, da própria família...Um dos sintomas do surto de Agostina é espalhar recipientes com água pela casa numa tentativa de purificar o ambiente, que, segundo ela, está maculado pelas mentiras, as quais ela não suporta mais. Nesse momento Aguilar põe em xeque as próprias mentiras da esposa, já que ela ainda não conseguiu explicar o que fazia no quarto com outro homem. Esse trecho tenta mostrar o poder de contagio da loucura e do delírio, pois a loucura só é loucura quando não é compartilhada, e o próprio Aguilar está tomado pelo ciúme, o que não deixa de ser uma espécie de delírio. Outra explicação para o delírio de Agostina está em seus traumas e dificuldade para resolver os conflitos familiares, a falta de amor de seu pai. O fato de sua mãe ter dito que a menstruação era algo sujo, quando ela menstruou pela primeira vez. Há também uma questão com o irmão mais novo, seu protegido, que apanhava do pai por ter gestos efeminados.“Trata-se de um livro que fala do delírio dela, do delírio do marido e do delírio de uma Colômbia que ama Pablo e odeia Escobar. Como o narcotráfico se sobrepôs ao Estado e à família naquele país. O poder pátrio da violência”, explica a professora de Direito. Ainda segundo Angela, o texto extrapola as fronteiras da Colômbia ao mostrar a fragilidade do Estado e da democracia. Nesse processo de enfraquecimento, surge a importância do narcotráfico, que passa a agir como substituto do Estado, na figura de um Escobar que investia em obras sociais e do mercado, como substituto da democracia, já que quem tem o poder não é o povo e sim os narcotraficantes. “Nesse contexto o Direito acaba entrando com um mero jurisdicismo processual”, pontua a especialista. No sentido psicanalítico, Freud define o delírio com uma tentativa de pensamento para tentar corrigir uma catástrofe interior, uma mecanismo de defesa quando a pessoa não consegue lidar com a realidade. A loucura de Agostina representa a insuportabilidade de lidar com aquela realidade, do pai machista e preconceituoso, de um estado antidemocrático, pois dá livre vazão ao narcotráfico, a realidade de um sistema contaminado. Laura Restepro deixa a cura de Agostina nas mãos de Aguilar, justamente por ele nunca ter tido nenhuma relação com o narcotráfico. Fazendo uma analogia com o livro, o Direito também não tem a cura para nossa sociedade doente, talvez porque ele também padeça de algumas enfermidades, mas tem suas responsabilidades e precisa atuar. Não se deixar ser funcionalizado.

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