“Há uma quantidade de capital brasileiro no exterior muito maior do que o total investido anualmente no país pelo conjunto do capital nacional, inclusive o estatal, e o estrangeiro”, diz o economista.
Confira a entrevista.
O projeto desenvolvimentista em curso no país desde 1954, apoiado no ingresso de capital estrangeiro, intensificado no governo
Juscelino Kubitschek e, posteriormente, na ditadura militar, levou a economia brasileira a um processo de desnacionalização. Na avaliação do economista
Adriano Benayon, isso é consequência de uma política econômica “contrária aos interesses nacionais”, e que criou “
imensos atrativos para o capital estrangeiro, alegando haver necessidade de poupança externa para complementar a nacional”. Segundo ele, a reestruturação do capitalismo brasileiro beneficia as empresas transnacionais, que “gozam do privilégio de ter custo de capital e de tecnologia praticamente zero no Brasil”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à
Benayon enfatiza que a desnacionalização em curso nos últimos 60 anos levou à desindustrialização, e tem tornado a indústria “
menos competitiva internacionalmente”. Na avaliação dele, se um país deseja ser competitivo e alcançar o progresso, “não deve de modo algum favorecer, em desfavor das locais, empresas de porte muitíssimo maior que essas e experientes tecnologicamente, através da produção e das vendas em mercados de alta renda e grande dimensão”. E reitera: “Só com firmas nacionais competindo no mercado é viável a acumulação de capital e de tecnologia no país”. Crítico do ingresso de capitais estrangeiros na economia nacional, o economista esclarece que “eles sempre foram desnecessários e continuam sendo. Além disso, são contraproducentes, porque acabam retirando muito mais capital do país do que o que fazem ingressar nele”.
Adriano Benayon é formado em Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutor em Economia pela Universidade de Hamburgo, na Alemanha. Foi professor da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. É autor de
Globalização versus Desenvolvimento (São Paulo: Ed. Escrituras, 2005).
Confira a entrevista.
– Percebe uma reestruturação do capital brasileiro e internacional? Quais são as razões?
Adriano Benayon – Certamente. Quanto ao Brasil, os capitais de maior vulto têm tido pouco espaço no país, dado que os setores da economia produtiva têm sido ocupados por
transnacionais estrangeiras, favorecidas pela política econômica por subsídios de várias ordens, desde setembro de 1954, logo após o golpe de Estado que derrubou o presidente
Getúlio Vargas.
Com isso, hoje o principal do grande capital brasileiro está nos bancos e nas empreiteiras, as quais trabalham também no exterior. Mesmo nos bancos há presença significativa do capital estrangeiro, desde o governo
Fernando Henrique Cardoso – FHC. O propósito deste, a serviço de interesses externos, foi apagar o que restava da
Era Vargas. Assim, um dos cinco maiores bancos em atividade no Brasil é o
Santander, vinculado ao grupo
Alpha, da Inglaterra, através do
Royal Bank of Scotland. Esse banco abocanhou o
Banespa, o maior banco estadual do mundo, por cifra ridiculamente baixa em relação aos ativos do banco, e livre de passivos, pois a União, através do PROES, os sanou antes da privatização. E há outros bancos estrangeiros importantes, como o
HSBC.
Capital externo
O expressivo montante dos ativos de brasileiros em refúgios fiscais no exterior (
offshore tax-havens), de 562 bilhões de dólares, é indicativo da peculiar condição de um país onde nunca faltaram capitais, mas cuja política econômica – de forma contrária aos interesses nacionais – criou imensos atrativos para o capital estrangeiro, alegando haver necessidade de poupança externa para complementar a nacional. Ao contrário do que ocorre aqui com as transnacionais, o grosso dos capitais brasileiros no exterior não controla atividades produtivas.
Quanto ao capital internacional também caberia melhor o termo “desestruturação” do que reestruturação, porque a principal mudança foi, desde, pelo menos, 1980, a hipertrofia do capital financeiro e a perda de importância relativa do capital aplicado na produção real. Isso resultou da concentração. Esta leva a que as oportunidades de investimento na produção se tornem cada vez menores em relação à
acumulação de capital resultante dos lucros oligopolistas.
Concentração de capital
A concentração do capital faz também com que cresça a concentração de renda. E foi a queda relativa do poder aquisitivo de 80% a 90% da população que fez minguar o investimento do capital na produção, já que só se investe se se prevê demanda. Isso tudo levou à extrema financeirização do capital, e essa é a principal mudança estrutural em âmbito mundial, à exceção de poucos, como a China.
A financeirização, por sua vez, levou ao primeiro surto do colapso financeiro, em 2007, e à depressão econômica nos EUA, Europa e Japão, entre outros. A concentração é a tendência normal na economia capitalista. Para atenuá-la, teriam de ter sido adotadas políticas públicas em favor da desconcentração. Entretanto, nos EUA, desde o início dos anos 1980, e especialmente dos anos 1990, não só não se fez qualquer coisa para deter a concentração como também foram revogadas as principais leis que regulavam os mercados financeiros.
Assim, juntou-se a avalanche de ganhos oligopolistas do grande capital, causadora de grande oferta de capitais, com a
desregulamentação do setor financeiro, em que predominam operações alavancadas, i.e., realizadas sem estarem cobertas senão por uma pequena fração de seu valor. Tudo isso contribuiu para que, em 2007, os derivativos não contabilizados nos balanços dos bancos ultrapassassem a inacreditável soma de 600 trilhões de dólares.
Como novos derivativos têm sido criados, essa soma não foi significativamente reduzida com a liquidação forçada de talvez US$ 40 bilhões desses ativos, em todo o mundo, às custas dos contribuintes, mediante a intervenção dos bancos centrais e governos, na realidade governados pelos grandes bancos. Grande parte dos títulos podres foi vendida por seu valor nominal (quando não valem nem 15% deste), em incríveis negociatas. Em suma, o colapso financeiro mundial não mostra sinais de estar sendo debelado.
– Desde que momento está ocorrendo o processo de desnacionalização da economia brasileira? Ela é uma tendência internacional ou acontece apenas em alguns países?
Adriano Benayon – Desde 1954. A globalização, que se estendeu muito desde o final da segunda guerra mundial, envolveu, em escala crescente, a aquisição de empresas em países que não os da transnacional adquirente, além dos investimentos diretos estrangeiros. A globalização aconteceu na maioria dos países com intensidades diferentes. Ela afeta de modo mais grave os países que não se haviam desenvolvido, nos quais ela asfixia o capital local e intensifica a concentração. Essas duas coisas tornam impossível o desenvolvimento econômico e social.
Implicações nos países não desenvolvidos
Mas os países não desenvolvidos reagiram de forma diversa à globalização: Coreia do Sul e Taiwan tinham de manter o comércio exterior aberto, mas evitaram, tanto quanto puderam, os investimentos diretos estrangeiros e conseguiram que as transnacionais não dominassem suas economias. O Brasil inicialmente manteve muitas barreiras ao comércio, mas onde deveria ter-se defendido não o fez. Não só se abriu aos investimentos diretos estrangeiros como lhes deu benefícios enormes. Então, a indústria da
Coreia do Sul e a de
Taiwan, mesmo partindo de base muito baixa em 1960, e sendo esses países carentes de recursos naturais, eles superam hoje em muito, qualitativamente, a indústria do Brasil e a da Argentina.
Eu explico em meu livro
“Globalização versus Desenvolvimento” que o Estado na
Coreia do Sul e em
Taiwan, repetindo o
Japão e o que fizeram todos os países que se desenvolveram, apoiou as
empresas nacionais de todos os modos. No Brasil, as nacionais foram grandemente prejudicadas pela política econômica que, ao mesmo tempo, favoreceu as transnacionais.
Ora, isso contraria toda lógica: pois, se você quer competição e progresso, você não deve de modo algum favorecer, em desfavor das locais, empresas de porte muitíssimo maior e experientes tecnologicamente, através da produção e das vendas em mercados de alta renda e grande dimensão. Só com firmas nacionais competindo no mercado é viável a acumulação de capital e de tecnologia no país.
O resultado da política de “
atração aos investimentos estrangeiros” é lastimável e está à vista de todos não só nas degradadas periferias das grandes cidades, mas também dentro delas. Esse resultado demonstra bem, mais de cinquenta anos depois, a falsidade do desenvolvimento sob
Juscelino Kubitschek, e, cerca de 40 anos depois, a dos supostos milagres econômicos de alguns dos governos militares.
– Quais são os setores econômicos nacionais mais atrativos para o capital internacional?
Adriano Benayon – Na realidade, todos, pois a coisa começou na indústria, depois estendeu-se aos serviços, como se vê hoje, na hotelaria, no turismo etc. e no agronegócio. Um dos mais rendosos é certamente o dos bancos.
– Quais os riscos e implicações desse processo para o desenvolvimento da nação, e fortalecimento da economia? Quais são os setores econômicos brasileiros mais prejudicados por causa dessa política de investir em transnacionais?
Adriano Benayon – Os riscos são a iminente crise no Brasil, com a
bolha de crédito já desenhada e demais gargalos decorrentes da infraestrutura econômica e social (saneamento, saúde, educação). Eu diria que danos imensos já ocorreram em grande escala. Diria também que o risco é de esses danos continuarem aumentando.
Na direção em que se está indo, o risco não é apenas o apontado pelo professor
José Luís Oreiro, de o subdesenvolvimento tornar-se eterno em nosso país. É o risco é de este ser desagregado, deixando de existir como país.
– Pode-se dizer que a desnacionalização tem contribuído para acentuar o processo de desindustrialização?
Adriano Benayon – Sem a menor dúvida. A desnacionalização levou à industrialização, e o setor industrial, cuja participação no PIB já andou aí pelos 35%, caiu para 15%. Essa é a queda quantitativa expressada nessa proporção.
Ela decorre de a indústria ter-se tornado menos competitiva internacionalmente, o que é facilitado pela política econômica, que abriu o mercado na indústria e isentou de impostos a exportação de produtos primários (
Lei Kandir/Collor). Sem falar na taxa de câmbio, que se valorizou por causa da entrada de capital do exterior na compra de títulos públicos. Portanto, a dívida, consequência do modelo dependente, também contribui muito para a desindustrialização.
Também qualitativamente a queda é abissal, pois, com maior intensidade nos últimos 30 anos, produções da indústria e dos serviços de maior valor agregado e conteúdo tecnológico têm saído do Brasil, sendo agora realizadas no exterior.
Além disso tudo, a indústria se tornou menos competitiva em razão do que expus no recente artigo “O custo da desnacionalização”: em suma, os altos custos de produção, apesar do baixo custo real de produção. Como assim? Respondo: as
transnacionais gozam do privilégio de ter custo de capital e de tecnologia praticamente zero no Brasil. Entretanto, em sua contabilidade superfaturam as importações de produtos finais e de insumos (o que cresceu com a abertura comercial) e subfaturam exportações. Ademais, pagam às matrizes por transferência – inexistente – de tecnologia e por outros supostos serviços. Daí preços altos, em contraste com custos baixos.
Também mostrei que a
descapitalização do país, resultante do modelo, leva a baixo investimento público na infraestrutura econômica e na social, ademais de os investimentos serem mal direcionados, pois os governos têm preferido atender aos interesses dos fornecedores (muitos transnacionais) dos bens e serviços a cuidar dos interesses nacionais.
– Por quais razões os grupos econômicos se tornaram mais robustos e sólidos do que o Estado? A globalização econômica, por si só, explica essa mudança? E por que os Estados incentivam a solidificação desses grupos transnacionais, especialmente o Estado brasileiro?
Adriano Benayon – Essas tendências existem há muitos séculos. A globalização, como a maioria das políticas, foi promovida sob a influência, para não dizer a comando, dos grupos econômicos sobre os governos. Isso no caso do Brasil foi muito extenso e profundo. Como disse no artigo citado, aí reside a maior – e menos conhecida – corrupção.
– Diante da globalização econômica e da atuação internacional das empresas, qual a possibilidade de os países fazerem escolhas no sentido de fortalecer a economia nacional e diminuir a intervenção internacional? Quais os limites nesse sentido?
Adriano Benayon – Precisam de uma tomada de consciência, que vá incluindo mais pessoas, e pessoas determinadas a mudar o presente estado de coisas. A vontade humana, bem inspirada, pode levar a êxitos inacreditáveis. Os limites são os atuais sistemas políticos nas “democracias” de modelo ocidental, em que a pluralidade de partidos, eleições periódicas etc. passam por democracia, mas não o são. Está tudo manipulado através da massa de dinheiro nas eleições e do controle absoluto da grande mídia por parte dos concentradores.
– Recentemente circulou na imprensa a informação de que 60% dos recursos do BNDES são destinados ao investimento das grandes empresas. O banco tem contribuído para esse processo de desnacionalização?
Adriano Benayon – Certamente.
– Em artigo recente o senhor menciona que os investimentos diretos estrangeiros registrados no Brasil de 1947 a 2008 totalizaram mais de 222 bilhões de dólares, mas as rendas remetidas do Brasil para o exterior, entre 1995 e 2008, somam mais de 292 bilhões. O que estes dados sinalizam?
Adriano Benayon – Eles ilustram o resultado da estrutura econômica e social determinada pela
desnacionalização. E essa é apenas uma das ilustrações de que o Brasil está manietado em seu desenvolvimento.
– Diante de tantas fusões, é possível saber se ainda há bastante capital nacional no Brasil? Há mais capital “nacional” no exterior?
Adriano Benayon – Talvez o que há seja suficiente para multiplicar por dez o volume dos produtivos no país, hoje em nível baixíssimo, por ter sido o Brasil coagido a adotar o modelo dependente. Como mencionei, há uma quantidade de capital brasileiro no exterior muito maior do que o total investido anualmente no país pelo conjunto do capital nacional, inclusive o estatal, e o estrangeiro.
– Por que o senhor não é favorável ao ingresso de capitais no país?
Adriano Benayon – Em primeiro lugar, eles sempre foram desnecessários e continuam sendo. Além disso, são contraproducentes, porque acabam retirando muito mais capital do país do que o que fazem ingressar nele. Se tivéssemos estrutura política como a da China, poderíamos receber capitais estrangeiros com vantagem para o país. Mas aqui é diferente: o sistema político, aberto à influência do dinheiro concentrado nas eleições, inviabiliza políticas favoráveis à sociedade.
Note-se que, quando as eleições puseram
Vargas no governo, mesmo contra a grande mídia, inteira, que o denegria, o capital estrangeiro ainda não se tinha apropriado do grosso da economia. Além disso, havia mais trabalhadores assalariados em relação à população total.
Getúlio venceu em São Paulo, onde estava o grosso da indústria, por maioria superior às vitórias tidas nos demais Estados. E em São Paulo estava o principal foco da oposição a ele, em classes mais abastadas.
Quando da “redemocratização” com a Constituição de 1988, o sistema de poder já se podia arriscar de novo ao processo das eleições pluripartidárias. Antes, não. Vargas vencera em 1950, e então houve intervenção através do golpe de Estado de 1954, dirigido, como o de 1964, pela oligarquia anglo-americana, cujos serviços secretos trabalharam, durante anos, para esses eventos.
– Quais os desafios da economia brasileira diante da conjuntura atual, de crise internacional e do processo de desnacionalização? É possível reverter esse quadro?
Adriano Benayon – Sugeri algo nesse sentido, em resposta anterior. É possível reverter o quadro, desde que nos livremos das ilusões inculcadas nas mentes dos brasileiros ao longo de dezenas de anos.
– Como o governo Dilma tem se posicionado diante desta desnacionalização?
Adriano Benayon – Parece não morrer de amores por ela, e tenta atenuar alguns de seus efeitos. Mas, no essencial, acomoda-se a ela.
– Muitos economistas consideram o governo Dilma, do mesmo modo que o ex-governo Lula, neodesenvolvimentista. O senhor concorda? Que modelo de desenvolvimento o Estado projeta para o país?
Adriano Benayon – A meu ver, esses economistas não têm ideia clara do que seja desenvolvimento e julgam ter sido o governo de
JK gerador de desenvolvimento.
JK dizia-se desenvolvimentista. Pela mesma razão, esses economistas consideram que
Dilma tenta se aproximar de algo parecido com as políticas de JK.
A semelhança é que
JK manteve e ampliou os subsídios para as transnacionais estrangeiras ocuparem o mercado brasileiro e que
Lula/Dilma manteve os desastres institucionais implantados por
Collor e principalmente por
FHC, como as privatizações, as concessões, as agências reguladoras, que servem às prestadoras dos serviços públicos privatizados, e não aos consumidores.
Lula, tal como
FHC, pressionou o Congresso para aprovar emendas constitucionais das reformas tributária e previdenciária, a
Desvinculação das Receitas Tributárias – DRU. Manteve também a
Lei de “Responsabilidade Fiscal” e tudo mais que o sistema de poder mundial mandou instituir, na era de FHC, em favor dos banqueiros beneficiários dos absurdos juros da dívida pública, inviabilizando adicionalmente a capacidade de as empresas nacionais competirem nos mercados.
Lula e Dilma
Lula e
Dilma não seriam tão monoliticamente defensores do capital estrangeiro, nem decididos anuladores das possibilidades de sobrevivência das empresas de capital nacional quanto o foi o “governo” de
FHC. Mas principalmente
Lula cedeu às pressões com facilidade.
Dilma tenta elevar o baixíssimo quantum dos investimentos públicos, que prevalece desde o início da década perdida, dos anos 1980. Na realidade, a dos anos 1990 foi mais desastrosa, devido às privatizações e demais transformações institucionais voltadas para sufocar em definitivo o desenvolvimento do país. Mas
Dilma não tem conseguido êxito. O absurdo serviço da dívida pública, a qual nunca foi auditada, consome dinheiro demais, e a redução da
taxa Selic ainda não afetou significativamente essas despesas que aleijam a capacidade de o governo investir.
O programa de investimentos públicos federais depende das parcerias público-privadas, um modelo incompatível com a política de um Estado capaz de comandar e orientar o processo de desenvolvimento.
Os Estados estão manietados inclusive pelo serviço de suas dívidas para com a União. As estatais – que hoje são poucas – e com a Petrobrás prejudicada desde a era
FHC e sem reversão tampouco disso – pouco investem em montante e em qualidade suficientes para impulsionar um desenvolvimento real. Este, de resto, depende também do setor privado, e o modelo dos últimos quase 60 anos o foi eliminando em favor das transnacionais.