sexta-feira, agosto 05, 2011

A comercialização da punição



Danilo Cymrot



“O criminoso produz crime
O crime produz polícia
Produz médico legista
O crime produz jurista
O crime produz...
O crime vive com a gente
O crime paga jurados
O crime produz inocentes
O crime produz culpados
O crime alimenta carrascos
Produz algemas, produz medalhas
Destrói a noção do sentido
Mas também produz Bonnie and Clyde
Produz romance, produz suspense
Produz avanços, non sense!
O crime não anda pra trás
O crime produz marajás
O crime inventa a moral
O crime inventa impressão digital
O crime nunca tem pena
O crime não é anormal
O crime produz crime
Em escala industrial”
(Crime, de Paulinho Moska e Luiz Guilherme)

Os versos dessa canção da banda Inimigos do Rei parecem atualizar a ironia de Karl Marx. Já no século XIX, o filósofo defendia que o crime tem um acentuado caráter produtivo no capitalismo. Gera empregos diretos e indiretos, produz o professor de Direito Penal e seu manual, a polícia e toda a justiça penal, os juízes, carrascos, jurados, os livros e filmes de suspense, invenções usadas na tortura ou nas investigações, fechaduras etc. O crime, pelos meios sempre renovados de ataque à propriedade, dá origem a métodos sempre renovados de defendê-la, e sua influência no desenvolvimento de máquinas é tão produtiva quanto as greves.O crime, assim como a guerra, causa prejuízos econômicos enormes a uma parcela da população. Por outro lado, gera lucros a outra. A indústria do controle do crime, termo consagrado por Nils Christie, não ficou indiferente ao medo da criminalidade e às taxas altíssimas de encarceramento observadas em diversos países ocidentais a partir dos anos 90 do século passado. Essa indústria apresenta algumas vantagens que a torna um setor extremamente seguro para investimentos. Fornece lucro, trabalho e, ao mesmo tempo, produz o controle sobre os que poderiam perturbar o processo social. O mercado consumidor é quase infinito, composto por toda a massa supérflua de consumidores “falhos” da nova ordem econômica. A demanda pelo serviço não tem limite, bem como a disposição de pagar pelo que é entendido como segurança. Não há falta de matéria-prima, pois a oferta de crimes é inesgotável. Trata-se de um setor industrial ecologicamente responsável, uma vez que não apresenta os problemas de poluição industrial e ainda “limpa” os elementos indesejáveis do sistema social. Fornece armas para o que é visto como uma luta legítima, tendo poucos inimigos naturais. Não há limites para a expansão do controle do crime quando é determinada pelo impulso industrial, pela busca de lucro, e não por valores. Entre os produtos e artigos anunciados pela indústria do controle do crime, incluem-se tornozeleiras eletrônicas para presos e armas não letais. São produtos que despertam a simpatia até de alguns críticos da expansão do Direito Penal, encarados como um mal menor que minimiza a superlotação dos presídios e a letalidade policial, respectivamente. Resta indagar se esses remédios não agravam a doença, na medida em que legitimam uma sociedade orwelliana e incursões policiais desnecessárias, que atingem os mesmos alvos de sempre. A expansão do mercado de segurança privada, por sua vez, redefine as fronteiras entre público e privado na sociedade, impondo a segregação discriminatória em condomínios fechados e shopping centers. A segurança privada não busca, imediatamente, objetivos de justiça nem a proteção de interesses coletivos. Se alguns autores defendem que em alguns locais, como bancos, pode haver um efeito dissuasivo geral, outros sustentam que a segurança privada gera um efeito de deslocamento do risco delitivo, ou seja, a segurança dos que podem pagar afeta negativamente a segurança dos que não podem. Perde-se uma importante tarefa do Estado, qual seja, a de neutralizar, na esfera da polícia e da persecução penal, o poder social, bem como a de impor o direito geral, e de proteger, de uma forma especial, os mais fracos. O negócio de segurança privada, ademais, é menos freado pela vinculação aos princípios do que a polícia estatal, dando uma margem maior ao desrespeito aos direitos humanos e aos abusos de poder. No terreno da punição, a superlotação dos presídios é encarada como um fato consumado, ao invés de o Estado procurar políticas alternativas de combate ao crime e à pobreza. Diante da escassez de recursos públicos para construir novos presídios e da ideologia neoliberal, a saída defendida é a privatização de presídios. De acordo com Loïc Wacquant, prof. da Universidade de Berkeley, Califórnia, essa política, seja nos EUA, seja na Grã-Bretanha, antes de ser resultado dos interesses privados das empresas do setor carcerário, resulta de um projeto político: a invenção de um Estado pós-keynesiano “liberal-paternalista”.O encarceramento de massa desempenha uma função econômica apenas indireta: a de “disciplinar as frações mais rebeldes do novo proletariado do setor de serviços, elevando o custo das estratégias de espera ou de fuga para a economia informal e ilícita de rua”. A ascensão intelectual e política da “Nova Direita”, com todo o seu discurso antiestatal, foi fundamental para a economicização do diagnóstico da crise do sistema penitenciário e das supostas soluções. Pregam-se os dogmas da eficiência, livre mercado, competição, aperto orçamentário, gestão empresarial, desmonte da assistência social e dos direitos trabalhistas. No entanto, segundo José Eduardo Faria, a proposta de privatização das prisões não representa o “enxugamento” do Estado, mas sua feudalização. Tratando homens como simples mercadorias e convertendo a mão de obra presa em operários “compulsórios”, tais propostas desprezam os pressupostos fundamentais subjacentes à criação do próprio Estado liberal. A formação de uma dualidade entre o poder público e os poderes privados poderia negar o próprio caráter público do Estado, pois abre caminho para a substituição da ordem legal, formalmente válida erga omnes, por ordens paralelas constituídas ad hoc e geridas “substantivamente” por milícias privadas que veem a administração da justiça apenas como um simples negócio. Não haveria razão para as empresas privadas desejarem a reintegração do egresso, pois a reincidência seria lucrativa. As empresas que desejam participar da administração penitenciária visam obter lucro da própria existência da criminalidade, logo, não têm porquê lutar contra a criminalidade. Finalmente, do ponto de vista ético, pode soar repugnante extrair lucros do sofrimento humano. É como se a eficiência e a redução de custos fossem a base da autoridade que a companhia exerce sobre os detentos. Diversos eufemismos são empregados para disfarçar a relação ilegítima de opressão e qualificar os envolvidos, tais quais “residentes”, “supervisores de residentes” ou “técnicos em segurança empresarial”. A privatização é cômoda para a consciência da população. Enquanto a punição permanece nas mãos do Estado, todos podem sentir-se carcereiros, responsáveis pela aplicação da dor. Porém, quando a punição passa a ser aplicada por um funcionário de uma empresa privada, não diz mais respeito ao cidadão, que pode, enfim, lavar suas mãos.

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