terça-feira, maio 15, 2012

Crônica


Cartas de Buenos Aires: Durar não é o mesmo que viver

Gisele Teixeira
A Argentina – para um grande jornal brasileiro um país “parado no tempo” – avança a passos largos em temas muito contemporâneos.
Aprovou semana passada a chamada lei de “morte digna”, que permite ao paciente terminal ou em estado irreversível rejeitar tratamentos médicos que possam prolongar seu sofrimento ou "vida artificial", conectada aos aparelhos.
Quem já viu uma pessoa querida sendo submetida a uma verdadeira tortura apenas para “durar” mais entende perfeitamente do que se está falando.
Aconteceu comigo em 2005, com a minha avó. Tive o privilégio – porque despedir-se de um ser querido o é – de estar com ela na véspera de sua morte, durante toda a noite, de mãos dadas.
Há dias ela não comia, por decisão própria, e isso foi causando uma série de falências em outros órgãos. Nessa reta final, ela não conseguia nem tomar água. Eu ficava molhando seus lábios com um paninho úmido para não ressecarem.
Sabíamos que ela tinha optado por não viver mais. Não estava doente, estava apenas cansada. Queria ir. Meu pai, que é médico, decidiu não interná-la. Seria cuidada em casa por ele e enfermeiras, rodeada do nosso amor.
Após esta noite de vigília, justo quando estava amanhecendo, ela abriu os olhos, olhou para o soro e me pediu: me desliga? Ela queria que eu tirasse a única coisa que a mantinha viva. Na hora me pareceu o mais certo a fazer, mas a gente não podia. Para nosso alívio, morreu naquela mesma manhã.
A medida aprovada na Argentina permite isso e era pedida especialmente por familiares de pessoas que se encontram em estado vegetativo. Já tinha sido aprovado pela Câmara dos Deputados, e agora recebeu votação unânime do Senado.
A lei dá a palavra final ao paciente, que deve deixar por escrito uma autorização de suspensão destes cuidados (inclusive o soro). Um familiar próximo também está habilitado a autorizar a interrupção do tratamento, nos casos em que a pessoa hospitalizada não esteja consciente.
Mas a legislação também permite que o paciente ou o familiar possam voltar atrás, se mudarem de ideia e optarem pela continuidade do tratamento. A nova lei adverte, porém, que "fica expressamente proibida a prática de eutanásia" e inclui que nenhum profissional de saúde será punido por atender a vontade do paciente ou da orientação dada por um familiar da pessoa internada.
Este é apenas um dos temas considerados “delicados” que a Argentina resolveu encarar. Mas há outros. Além de ser um dos países pioneiros no matrimonio igualitário e na condenação de repressores da ditadura militar, aprovou esta semana uma lei que permite escolher livremente, sem intervenção médica ou judicial, a identidade sexual.
O conceito de “desenvolvimento”, por sorte, não tem apenas o viés econômico.

Gisele Teixeira é jornalista. Trabalhou em Porto Alegre, Recife e Brasília. Recentemente, mudou-se de mala, cuia e coração para Buenos Aires, de onde mantém o blog Aquí me quedo, com impressões e descobrimentos sobre a capital portenha

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