quarta-feira, julho 11, 2012

Identidades e diversidade cultural, segundo Nenevé e Amaral

Se o Brasil é um exemplo de nação multicultural, o estado de Rondônia é um laboratório vivo para estudos sobre multiculturalismo. Aqui vemos e vivemos uma variedade de culturas, de origens, de lingagens. É impossível afirmar que ...
Nair Ferreira Gurgel do Amaral I
Miguel Nenevé l
Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto,
chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau
gosto. É que Narciso acha feio o que não é espelho
e à mente apavora o que ainda não é mesmo velho [...] (Caetano Veloso)
Se o Brasil é um exemplo de naçao multicultural, o estado de Rondônia é um laboratório vivo para estudos sobre multiculturalismo. Aqui vemos e vivemos uma variedade de culturas, de origens, de lingagens. É impossível afirmar que há uma cultura única, uma língua pura, um linguajar único, uma única maneira de viver e assim por diante. É neste sentido que consideramos interessante e relevante discutir questões como hibridação, multiculturalismo e a necessidade de tolerância ao que não é “puro” aos nossos olhos em todos os aspectos.Os versos da epígrafe foram extraídos de “Sampa” canção de Caetano Veloso. O texto descortina com maestria o universo do impacto cultural causado pelo despreparo das pessoas em contato com outras culturas que não a sua. Uma xenofobia tênue, às vezes, porém radical e intolerante na maioria dos casos. A escolha, não casual desses versos, deve-se a uma reflexão proposta neste ensaio a respeito da diversidade cultural. Por que o narcisismo, em suas mais diferentes nuances, ainda permanece vivo nas sociedades atuais? Por que, por exemplo, temos dificuldades enormes para aceitar hábitos e costumes que nos são estranhos e, principalmente, por que a tendência é classificar o que é diferente daquilo que vivenciamos no nosso dia a dia como feio, esquisito, errado ou anormal? Na busca por respostas a essas angústias, um “mergulho” reflexivo acerca da diversidade cultural faz-se necessária como tentativa de entender “o avesso do avesso”, sem chamar “de mau gosto o que vi”.Assumir a diversidade e, juntamente com ela, o multiculturalismo, requer entender que vivemos numa sociedade híbrida e que, numa época classificada como pós-moderna, tornam-se inadmissíveis oposições como popular versus culto, moderno versus tradicional, urbano versus rural canônico versus popular. A hibridação precisa ser vista com um olhar transdisciplinar. E mais. É necessário que se dê ao conceito o enfoque das ciências sociais, embora alguns prefiram usar os termos: “sincretismo” para as questões religiosas, “mestiçagem” em história e “antropologia e fusão” em música. Nestor G.Canclini é um dos estudidosos que tem explorado a questão das culturas híbridas. Ele assim esclarece “entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. (CANCLINI, 2006, p. 29). A hibridação tomada como ato político serve para trabalhar democraticamente com as diferenças, evitando a segregação e fortalecendo a interculturalidade. Dessa forma, espera-se mostrar que não existe mundo sem cultura nem falta de identidade. A relação entre os dois termos é distinta e ao mesmo tempo imprescindível: um não sobrevive sem o outro. Os processos que constroem sociedades híbridas e que colocam os diferentes em contato permanente exigem da sociedade contemporânea um convívio com a heterogeneidade. Muitas vezes a cultura é confundida com as noções de desenvolvimento, educação, bons costumes, etiqueta e comportamentos de elite. Para evitar tal confusão, a ampliação do conceito de cultura encontrou em Canclini (2006) uma vertente coerente que ele sugere que oas diferenças podem transformar-se em desigualdades e promover as disparidades entre as pessoas. Assim, ao restringir o uso do termo cultura para a “produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social”, Canlcini enfatiza que a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e reestruturação do sentido. As reflexões do indiano Homi Bhabha reforçam nossa concepção a respeito do termo “cultura” e chamam a atenção para a expressão “diferença cultural”, alvo de muitos debates na atualidade. Diz o pensador indiano: “A cultura só emerge como um problema, ou uma problemática, no ponto em que há uma perda de significado na contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças, nações”. (BHABHA, 1998, p. 63). O canadense Peter McLaren, uma referência quando se fala em multiculturalismo argumenta que nem todo o “multiculturalismo” é benéfico: há o “multiculturalismo conservador, o multiculturalismo liberal e liberal de esquerda, e o multiculturalismo crítico ou de resistência visa transformar as próprias condições sociais e históricas que naturalizam os sentidos culturais.” Para ele não existe uma humanidade comum, mas apenas identidades definidas pelos contextos de poder, de discurso ou de cultura. (MCLAREN, 2000, p.73). Pensar e praticar o multiculturalismo implica mudanças, transformações históricas e, principalmente, atuações sociais. Aceitar as ideias multiculturalistas não implica necessariamente desconhecer as divergências que envolvem a discussão a respeito do tema. O Multiculturalismo que defendemos é entendido como: uma atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural; uma meta a ser alcançada em um espaço social; uma estratégia política; um corpo teórico de conhecimentos e até como o caráter atual das sociedades ocidentais. A Pluralidade Cultural torna-se, então, um desafio para a sociedade atual. Respeitar as diferentes culturas vai além do simples ato de tolerância, antes disseminado nas escolas e espaços religiosos. Também significa lutar por um mundo em que o respeito às diferenças seja a base de uma visão de mundo cada vez mais rica e transformadora. Por isso, entendemos que uma língua é inseparável da cultura do local onde é falada. E, sendo assim, é ideológica também, como explica M. Bakhtin (1988): “Toda palavra é ideológica e toda utilização da língua está ligada à evolução ideológica.” Esta assertiva coloca em evidência a importância da interação verbal como realidade fundamental da língua. A interação verbal é fundamental nessa relação social, que é, antes de tudo, a linguagem. Os lugares sociais somente podem existir por meio de uma rede de lugares discursivos. O pensador queniano Ngugi Wa Thiongo afirma que a lingua é produtora de uma comunidade pois  ela possibilita a negociaçao que faz a evolução possível. É esta negociação que faz que uma comunidade se conheça como diferente da outra. Linguagem carrega o universo cultural da comunidade, cada comunidade de humanos tem valores e um sistema de ética e de estética. O caráter histórico da linguagem faz dela uma atividade sujeita a regras de construção das expressões e faz depender sua interpretação de sistemas mais ou menos estáveis de representação. Já o caráter social da linguagem a torna dependente do contexto em que se realiza e do modo pelo qual os interlocutores tornam-se agentes desse processo de construção. Sendo a língua é um repertório de possibilidades, colocado à disposição dos falantes que a utilizam conforme suas necessidades de expressão, retomamos a reflexão bakhtiniana de que “todo signo é ideológico; a ideologia é um reflexo das estruturas sociais; assim, toda modificação da ideologia encadeia uma modificação da língua” (BAKHTIN, 1988, p. 15), para complementar com outra reflexão acerca da posição hegemônica em relação ao estudo da linguagem. O mito de Babel, que remonta à criação do mundo, revela a subalternidade, uma vez que tudo que lhes escapa é marginal ou marginalizado. “Babel inaugura num só gesto dois movimentos: o mito da unidade perdida e o da diferença como castigo divino. Conviver com a diferença passa a ser uma condenação, não um enriquecimento das formas de experiência e compreensão do mundo e da vida”. (GERALDI, 2010, p. 71). Sabemos todos que a língua falada por uma pessoa é marca de sua identidade na relação com a comunidade em que vive. Por isso, discriminar um modo de falar é a mesma coisa que não respeitar os valores de outras pessoas que não falam como nós. Esse modo de pensar e agir sempre existiu. É a imposição do poder sobre as diferenças, é a origem do conceito de “erro de fala” e, consequentemente, a incorporação de preconceitos como: “inferior”, “feia”, “pobre”, dados aos modos diferentes de se expressar. Assim, língua e linguagem se misturam, demonstrando que nosso papel social é propiciar o verdadeiro exercício da cidadania aos falantes de uma determinada língua, desconstruindo mitos. O narcisismo desfeito leva à ampliação da visão cultural para além do espelho e Babel, uma metáfora para entender que as diferenças, longe de serem um problema, podem ajudar a compreender este mundo tão “pluri” e tão “multi” no qual convivemos diariamente com as diferenças.
Referências
AMARAL, Nair F. G. do. Pluralidade Cultural, Leitura e Linguagem na Formação Docente. Relatório de Pós-Doutorado. Faculdade de Educação – FE/UNICAMP/SP, 2011.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2 ed. 1988.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte/MG: Editora da UFMG, 1998.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Tradução Heloisa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. Tradução da Introdução Gênese Andrade. 4 ed. 1. Reimp. – São Paulo/; Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
GERALDI, J. W. A Aula como Acontecimento. São Carlos/SP: Pedro e João Editores, 2010.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Ed. 2000.
McLAREN, P. Multiculturalismo Crítico. São Paulo: Cortez, 2000.
Thiongo , Ngugi Wa. Europhonism, “Universities, and the Magic Fountain: The Future of African Literature and Scholarship.” 2005. Disponível em: http://www.assatashakur.org/forum/open-forum/7687-ngugi-wa-thiongo-future-african literature.
VELOSO, Caetano. Sampa. Disco: Muito (Dentro da Estrela Azulada) Lançamento: 1978. Gravadora: LP/CD Philips/Polygram. Disponível em: http://www.caetanoveloso.com.br/sec_busca_obra


[1] Doutora em Linguistica da Universidade Federal de Rondonia – UNIR – email:nairgurgle@uolcom.br
[2] Doutor em Inglês e Literaturas – UNIR. E-mail:neneve@unir.br

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